A dimenso do corpo do ponto de vista da Complexidade

Terezinha Mendona

tereza@iecomplex.com.br

Psicanalista, Dra em Cincias Sociais

Presidente do Instituto de Estudos da Complexidade

(www.iecomplex.com.br)

 

 

Todo o animal est no homem, mas nem todo o homem est no animal

Lao Ts

 

Se pensarmos o ttulo desta mesa, Corporeidade e tica da Complexidade, temos necessariamente que nos indagar sobre esta curiosa articulao: a dimenso tica do corpo e a tica da complexidade. Sem me alongar nas premissas ticas da complexidade, que E. Morin to bem desenvolveu e sistematizou no Mtodo 6, destacarei pelo menos a necessidade de praticarmos uma tica da religao de tudo aquilo que foi artificialmente separado pelo pensamento clssico ocidental.

O corpo fragmentado pelo especialismo necessita ser reintegrado por uma viso generalista que no deve, contudo, suprimir os conhecimentos especficos. Necessita ser pensado de um ponto de vista ecolgico, como unidade inseparvel de seu meio, comportando seu ambiente fsico e social. Assim, teremos que conceber o corpo atravessado por todas as experincias que o afetam e o constituem, desde o entorno familiar que imprimiu suas marcas corporeidade do beb, s mensagens enigmticas transgeracionais, filogenticas, antropolgicas, histricas e transculturais.

As cincias da complexidade vm mostrando a necessidade de trabalharmos no interior deste campo no qual, corpo, psiquismo  e meio ambiente formam um conjunto de  partes que se compem e decompem num jogo de mltiplas influncias inter-constitutivas.Aqui, as relaes entre o todo e as partes so de uma extrema ambigidade, unitas-multiplex, considerando-se como Morin enuncia no Mtodo1 que, o todo , ao mesmo tempo , mais e menos que a soma das partes, e que o todo , mais e menos que o todo.

Se pretendemos nos colocar no interior deste pensamento, de maneira que a partir dele possamos pensar um paradigma clnico compatvel com as teorias da complexidade, precisamos comear por internalizar o indissocivel entrelaamento deste corpo-psiquico-ambiental e seu equivalente natureza e cultura.

O corpo humano  uma mquina complexa com trinta bilhes de clulas, que se constituiu pela evoluo natural ao longo de dois ou trs bilhes de anos, como parte de um ecossistema maior que o envolve, o antecede e em direo ao qual ele se projeta, permanentemente, para o futuro. Apresentando-se como emergncia no processo de produo da vida no planeta, o humano guarda, em relao matria inorgnica, um ntimo grau de parentesco no que se refere aos constituintes de seus nveis elementares, diferenciando-se apenas pelo grau de complexidade de sua organizao. Situa-se, desta forma, nos estratos mais elevados da pirmide que, metaforicamente historiciza este caminho permanente da vida, que parte do simples em direo ao complexo. Caminho oposto percorrido pelos ditames da morte, que decompe em unidades cada vez mais simples aquilo que, no interior de uma temporalidade, se esforou para fazer lao.

Ainda assim, apesar dos estudos etolgicos demonstrarem que as fronteiras entre o humano e os demais habitantes do planeta se encontram cada vez mais tnues, na tessitura dos corpos vivos, que se d por consecutivas dobras da matria sobre si mesma, um salto qualitativo ocorre no humano, diferenciando-o, talvez, dos demais mamferos: trata-se aqui justamente desta capacidade reflexiva que possibilita um retorno sobre si mesmo, facultando a ele reconhecer –se como um sujeito capaz de pensar-se a si prprio e tomar-se como objeto desta reflexo. Estamos falando aqui, da passagem de um ser senciente para um ser consciente de si. No decorrer desta escalada, o crebro humano surge, no topo da pirmide como a mais complexa organizao viva que possibilita esta fabulosa habilidade de secretar  pensamento e psiquismo, habilitando-nos produo de intrincados cdigos lingusticos-afetivos prprios de uma organizao simblica altamente complexa.

No devemos contudo nos entusiasmar com esta elevao do humano este mais alto grau de complexidade, pois como est colocado na epgrafe deste resumo, todo o animal est no homem. Portamos a totalidade de nossa animalidade, no que ela tem de melhor, aliada a circunstncias ambientais, pode ativar e disponibilizar toda sorte de comportamentos e atitudes. Somos 100% Sapiens e 100% demens, como nos ensina Morin, capazes portanto de todo tipo de barbrie e dos mais sublimes atos de criao.

Na pirmide do desenvolvimento, desde a mais simples forma de vida, o unicelular procariota, podemos afirmar a existncia de um tipo de computao que j comporta, entretanto, operaes de carter cognitivos. Dizendo mais claramente, o ser celular mais humilde capaz de computar integralmente a sua prpria organizaco e de computar parcialmente  os dados de seu ambiente exterior. ( Morin, E. Mtodo 2)

Esta atividade computacional e cognitiva gera um conhecimento do vivo que se desconhece a si mesmo, ou seja, trata-se desta fascinante e aterradora idia de que algo na Escherichia coli pensa de modo organizacional, constituindo um eu sou, que evidentemente est fora do plano da conscincia ou da representao. Da mesma forma, e isto passvel de nos surpreender, maravilhar e assustar, podemos dizer que h uma cognio nos nveis mais elementares de nosso corpo, implicando nossas clulas, enzimas e protenas, constituindo uma rede de comunicao e de trocas que expressa a presena de um pensamento sistmico inteligente organizador de nossa sade e bem estar, que est absolutamente fora do controle consciente efetuado por nosso sistema nervoso central e por nosso aparelho cerebral.

Morin postula, assim, a existncia de um sujeito encarnado, de algo que pensa em ns, para alm de nossa conscincia e para alm de nosso inconsciente, tomando este conceito na acepo freudiana que compreende o recalcamento de experincias conflitivas no significadas.

Este processo, que vai se sofisticando gradativamente, sobrepondo emergncias de emergncias, termina por constituir, nos animais superiores, estas formaes cognitivas altamente complexas e descentralizadas que caracterizam, por exemplo, os sistemas imunolgicos, que Simondon vai postular de forma semelhante, como um outro eu que age, de forma silenciosa,   no mago dos indivduos.

Ousando um pouco mais, Morin vai enunciar uma interessante hiptese antropolgica sobre a noo de nosso duplo corporal, pautando esta idia na formulao de uma imagem virtual do corpo apreendida a partir das inscries codificadas no DNA e percebida pelo cogito atravs de uma operao reflexiva arcaica  inconsciente e universal na humanidade. Estamos no domnio da obscuridade somtica, no campo de uma reflexividade invisvel, onde no h esprito - crebro capaz de representao. Trata-se de um modelo virtual, o pattern do DNA, que assombra o ser celular como espcie de imagem fantasma e, com base nisso, evoca-nos o duplo, como que por projeo.

Este espectro corporal que nos acompanha durante toda a vida e que nos faz supor uma alma imortal, materializa-se nos reflexos e nas sombras de nossos corpos projetados, nas construes fantasmticas das sociedades arcaicas, surpreendendo-nos nos sonhos e na literatura de todos os tempos e apresentando-se, no dizer freudiano, como um estranho anunciador da morte. a este estranhamente familiar, o unheimlisch freudiano levado para alm das fronteiras da representao que, em minha leitura, Morin vai associar estes Outros Corpreos que se constituem como virtualidades absolutamente mais inconscientes do que qualquer contedo conflitivo passvel de enunciao verbal.

Spinoza nos oferece um importante dispositivo para repensar o dualismo corpo-alma, propondo, em seu paralelismo psicofsico, que tudo aquilo que acontece no corpo acontece simultneamente na alma e vice versa. A afetao se d de forma imediata e paralela, diferentemente da idia de um acontecimento no corpo refletindo sobre a alma ou o inverso. Ainda nos difcil pensar sem dissociar, herdeiros que somos das marcas cartesianas. difcil mesmo conceber um outro tipo de organizao, sendo esta tarefa uma das importantes apostas das cincias da complexidade.

Como organismos vivos, transitamos da percepo computao e desta cognio, que implica no apenas capacidade de calcular e aferir, mas tambm a aquisio de conhecimento; chegamos conscincia, que implica o aspecto reflexivo e da alcanamos simultaneamente o pensamento como capacidade de problematizar o mundo externo e interno em suas mltiplas interaes. Tudo isto resulta de uma Inteligncia da Natureza, no sentido bergsoniano do termo, na qual se inscreve tambm nossa prpria inteligncia ou capacidade de compreenso e maquinao, por caminhos que envolvem todos os passos anteriores: percepo, computao, cognio, conscincia e pensamento.

importante assinalar que a qualidade da transicionalidade entre estes processos o que necessita ser assegurado, tanto do ponto de vista de uma epistemologia da complexidade, quanto  do ponto de vista da viabilidade e manuteno de nossa sade psicofsica. Perceber implica um duplo movimento de afetao que, por si s, atua na dissoluo de qualquer fronteira rgida ou permanente entre sujeito perceptor e objeto percebido. Do ponto de vista da fenomenologia da hiltica de Edith Stein e do conceito de transicionalidade em Winnicott, o objeto se oferece percepo, no momento mesmo em que produzido pelos processos imaginativos, constituindo-se simultaneamente como interior e exterior, real e fantasiado, simultaneamente dado e criado.

Winnicott vai falar do corpo como uma unidade que ele nomeia psiqu-soma, postulando uma til diferenciao entre soma e corpo, sendo este ltimo, resultante de uma operao de sntese integradora, favorecida pelos impulsos vitais, que iro permitir o sentido de habitar o prprio corpo; ou seja, pela via da elaborao imaginativa, a psique passa a habitar o soma, constituindo a unidade corporal que concebida como algo indissocivel de seu meio.

pela via da multiplicao das afetaes que se constri a teia da vida na qual tudo est ligado, desde o micro ao macrocosmo, em permanente comunho e disrupo, estes pares antitticos relativos vida e morte, este permanente atar e desatar de ns que so, em ltima instncia, o fundamento da vida. Eros e Thanatus, nesta inconstante e precria instabilidade.

Assim, este corpo computante, compreendido como microcosmos, poeira de estrelas, dotado de cognio, conhecimento de si e do meio, conscincia, pensamento e inteligncia, se reveste tambm de infindveis mistrios, circunscritos pela questo que Deleuze assinala como o grito de Spinoza: o que pode um corpo? Os limites desta unidade qual chamarei corpo-psquico-ambiental, esto sempre surpreendendo a curiosidade cientfica. A plasticidade de sua potncia, tanto para adoecer – funo degenerativa – como para se curar – funo regenerativa   surpreendem frequentemente nossa capacidade imaginativa.

O que se passa neste campo cruzado de foras, de mltiplas e infinitas relaes que atravessam este indissocivel liame do corpo-psquico, lanando suas experincias num fluxo produtivo e criativo que envolve sade, doena e cura? Como acontece tambm sua insero em outro campo maior, onde aquilo que o cerca, seu meio, impe-se como constituinte sendo, ao mesmo tempo, constitudo por ele, resultando nesta unidade corpo-psquico-ambiental?

A concepo deste poderoso pattern virtual e de um sistema imunolgico que computa,  fazendo-se manifestar igualmente por seus lapsos e equvocos, promove uma descentralizao ainda mais assustadora  sobre nossas iluses de autoconhecimento e controle, do que aquela produzida pela ferida narcsica que envolveu a formulao do inconsciente freudiano. exatamente quando esta obscura cognio do corpo falha ou se equivoca, que mostra a sua cara, na manifestao dos estados patolgicos. Por que motivos alguns adoecem e outros, em condies aparentemente iguais, mantm-se saudveis? O corpo imune remete-nos novamente questo Spinozista acima referida.

Espero ter deixado claro, a esta altura de minha argumentao, que o pensamento da complexidade no confere ao aparelho central a primazia do comando de nossas atividades, ao contrrio, esfora-se para mostrar a existncia de cognies e memrias celulares altamente sofisticadas e engendradas rizomaticamente nos demais tecidos do corpo, constitudos como formas inteligentes de processar informaes e orientar o vivente.

No comeo deste texto, aponto para a dimenso da temporalidade do corpo em seu percurso biolgico evolutivo, inseparvel de sua insero nos processos culturais. Mencionei seu pertencimento ao ecossistema que o envolve, no interior do qual se projeta permanentemente em direo ao futuro, o que nos leva a indagar: qual o futuro deste corpo humano que hoje conhecemos?

As biotecnologias acenam com possibilidades de transformaes radicais sobre os destinos do corpo num futuro prximo, corpo modificado em seu interior, no nvel da microbiologia, com as promessas de regenerao advindas da utilizao das clulas tronco, corpo hospedeiro de rgos doados ou criados em laboratrio, corpo fertilizado artificialmente, corpo implantado com chips que pretendem substituir processos neuronais e restituir os movimentos perdidos, enfim, um corpo hibrido, cada vez mais distante daquilo que hoje conhecemos, fazendo com que frequentemente se recoloque, no universo das discusses em biotica, a questo da Natureza Humana, desde a tentativa de defini-la, se ela existe como tal ou apenas como segunda Natureza e se teramos o direito de modific-la. Mas isto uma imensa discusso que est muito alm da proposta deste texto.

fato que muitas operaes e transformaes se efetivaram desde sempre sobre o corpo, lugar de experimentaes de toda ordem, desde os ritos sacrificiais e de passagem, at as transformaes nos padres estticos, avanando pela medicina cosmtica de carter cirrgico at as mais sofisticadas tcnicas contemporneas que vm cada vez mais substituindo o bisturi por agulhas que quase ou nenhuma marca deixam registradas sobre o corpo.

Retomando Winnicott, Gilberto Safra  radicaliza a importncia do corpo como instrumento, afirmando que toda criao humana parte da corporeidade, que os objetos culturais so metforas do corpo, ou seja,  tudo que o homem cria tem  o corpo como matriz. Assim, por exemplo, poderamos dizer que o copo recria o seio.

De fato, pesquisas assinaladas por Henri Atlan em seu livro o tero Artificial,  corroboram esta inteno de metaforizar o corpo em todas as suas funes. Que o processo completo de criao de um ser humano possa vir a estar, nos prximos 10 ou 50 anos, inteiramente colocado fora do corpo algo que transformar de forma inimaginvel as relaes sociais, as estruturas familiares, hbitos, valores, costumes, conceitos comumente naturalizados, como a prpria idia de maternidade.

Considerando-se 1) o montante de investimento financeiro nestas pesquisas, 2)os interesses de grupos polticos fortemente organizados em torno de temas como os direitos da mulher e do homem, a preveno do aborto, entre outros, 3) os avanos exponenciais das pesquisas cientficas, no temos porque considerar esta hiptese como matria de fico cientfica. Nem teramos tambm porque, na perspectiva da complexidade, desprezarmos o conhecimento que procede dos mitos e dos escritos ficcionais.

O corpo de hoje j no o mesmo de ontem e cada vez ser menos que o de amanh. O homem do futuro viver muito, ampliar sua memria, talvez no envelhea e a procriao ser um processo de total exterioridade, guardando com o corpo apenas uma relao concernente ao universo da microbiologia.

Do ponto de vista tico, no nos cabe censurar de antemo este futuro ps humano, mas acompanhar criticamente seus rumos. Afinal, talvez ele continue sendo humano, dependendo do que passaremos a considerar como tal. Se as construes culturais puderem realmente ser encaradas como metforas do corpo, o que significaria  recriar o prprio corpo? Se o copo a metfora do seio, o corpo hbrido, como produo cultural, poderia ser pensado como uma metfora de Deus?

Metamorfosear a natureza humana, nesta ao reflexiva do homem sobre si mesmo se afigura como a tarefa mais ousada e requer uma cincia capaz de refletir sobre si mesma. Fukuyama, Morin, Atlan, entre outros, consideram que os aspectos das cincias neurocerebrais poderiam arrefecer o pior do animal em ns, nossos ataques de fria, mpetos assassinos, estimulando o altrusmo e a compassividade; admitem que a reforma da vida um anseio antropolgico fundamental, que esteve desde sempre vetado como nos ensinou o mito bblico da Gnesis. A expulso do paraso, aps Ado e Eva haverem provado da rvore do conhecimento do bem e do mal, teve por objetivo obstaculizar o acesso rvore da vida: Para que no comessem da rvore do conhecimento da vida e vivessem para sempre, como os deuses.

Como nos assinala Morin no Mtodo 6, se pudssemos fazer um bom uso das cincias, o que dependeria da conscincia dos cientistas, polticos, cidados, processos econmicos, polticos, sociais e culturais, ainda seria essencialmente tico considerar como intangivelmente sagrada a natureza humana ou, ao contrrio, considerar como tico uma superao capaz de melhorar o ser humano?

 

Referncias Bibliogrficas

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Fukuyama, Francis. Nosso Futuro Ps-Humano: conseqncias da revoluo da

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Morin, Edgar. O Paradigma Perdido- a Natureza Humana. Portugal, Publicaes       

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___________ O Mtodo 2. A vida da vida. Ed Sulina, Porto Alegre, 2001

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Simondon, Gilbert. L Individuation Psychique et collective. Ed. Aubier, 1989

Winnicott, W.D. A Criatividade e suas Origens e Objetos transicionais e

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