Entrevista : Tereza Mendonça Estarque

A Psicanálise no Cotidiano da Vida

Entrevista : Tereza Mendonça Estarque
Psicanalista, Mestre em Psicologia PUC Rio

 

 

Doutora em Ciências Sociais PUCSP

 

Presidente do Instituto de Estudos da Complexidade

 

Por Carlos Leal

 

 

A nossa entrevistada de hoje esteve em Nova Friburgo dia 31 de maio participando do XI Congresso Médico da Região Centro-Norte Fluminense e do Centro de Estudos da APNF-Associação Psicanalítica de Nova Friburgo.  Como psicanalista se interessa e vem estudando o impacto das novas tecnologias sobre o corpo e a mente das pessoas.  Afinal, o primeiro ser humano de proveta já completou a maioridade.  Os profissionais de saúde precisam estar preparados para as novas questões e conflitos que estas pessoas trarão aos nossos consultórios.

 

Nesta entrevista que nos concedeu Terezinha Mendonça nos convida a pensar também sobre as questões éticas que o advento das biotecnologias nos apresentam pois, do contrário, aquilo que deveria servir ao homem poderá a vir a degrada-lo.

 

 

P. Você acredita que o desenvolvimento biotecnológico (fecundação em laboratório, clonagem, uso, transplantes de órgãos oriundos de outras espécies, próteses cibernéticas) ocorreu numa velocidade acima da capacidade do homem de absorve-los ?

 

1) Sim, algumas produções da biotecnociência são surpreendentes, impactantes e acontecem rápido demais, suprimindo um tempo de elaboração que seria necessário para assimilá-las. Corremos o risco de incorporá-las em estado bruto, sem uma reflexão crítica acerca dos caminhos que gostaríamos de trilhar.

 

A ausência ou encurtamento deste tempo de elaboração pode produzir  em nós, o efeito de um susto, que em psicanálise chamaríamos de efeitotraumático. Contudo, ao contrário do que se costuma pensar, um trauma nem sempre produz efeitos destrutivos. Ferenczi, um psicanalista muito próximo a Freud, falava em progressões traumáticas, ou seja, na capacidade de desenvolvermos potenciais adormecidos a partir de vivências difíceis. Tudo dependerá de como seremos capazes de lidar com elas, experimentando-as como algo que nosimpulsiona e que nos faz crescer ou sucumbindo a elas.

 

Penso que não devemos ficar reféns da tecnociência. Ela é uma criação do Homem e deve ser colocada a seu serviço, na intenção de melhorar as condições de vida de um maior número possível de pessoas. Para que isto seja possível, é fundamental que possamos produzir este tempo de elaboração, favorecendo o debate público, democratizando as informações e criando espaços de discussão nas comunidades, nos serviços públicos  hospitalares, nas escolas, etc…

 

 

P. Até há bem pouco tempo chamávamos de “produção independente” à procriação sem casamento.  Em tempos da barriga de aluguel o conceito se expandiu pois nem mesmo gerar o filho no próprio ventre é necessário.  A relação homem-mulher é uma prática ultrapassada ?

 

2) A relação homem-mulher nunca será uma prática ultrapassada. Ela se tranforma e o que poderá vir a ser ultrapassado é a ligação intrínseca entre sexo e procriação. A revolução produzida pelos anti-concepcionais abriu espaço para a vida sexual com ausência filhos. Já a medicina da procriação retira a concepção do contexto erótico para inserí-la no contexto médico-hospitalar.Não é mais necessário que haja uma relação sexual para que um bebê venha ao mundo. É um novo conceito, sem dúvida, que traz modificações profundas nas escolhas possíveis de cada indivíduo. A reprodução humana tornou-se algo muito mais pragmático. Em princípio, pode-se planejar o sexo dos filhos, conceber em idade avançada, congelar óvulos e espermatozóides para alguma eventualidade futura etc…

 

Do ponto de vista social, existem movimentos internacionais feministas e masculistas que apostam na possibilidade de concepção e gestação fora do útero para solucionar antigas disputas entre homens e mulheres. Com a gestação em laboratório os homens estariam mais em condições de reinvindicar igualdade de direitos frente a posse e guarda dos filhos e as mulheres sofreriam menor discriminação diante do mercado de trabalho.

 

 Quanto à produção independente, o exemplo mais radical desta autonomia é, sem dúvida, a clonagem, pois neste caso, suprime-se não apenas a relação sexual, mas também qualquer participação de células masculinas no processo. É um caso ainda mais delicado do que a reprodução em laboratório.

 

P. Nas suas palestras você nos lembrou que algumas questões aparentemente inéditas trazidas pela engenharia genética já se anunciavam nas narrativas mitológicas.  Você acha que aquilo que o homem de ontem fantasiava o homem contemporâneo  realiza ?

 

3) A capacidade ficcional cumpre um importante papel como fator de antecipação da realidade, funcionando também como recurso para a sua elaboração. De fato existem muitas semelhanças relevantes entre os relatos mitológicos, a ficção científica e as realizações das ciências.Podemos pensar na ficção científica como uma forma contemporânea de mitologia,que traz de volta e recria os mitos arcaicos através de um nova linguagem.Hoje chamamos mutantes aos seres híbridos da antiga mitologia. Nas estórias infantis de hoje, eles são super-heróis e povoam o imaginário de nossas crianças, para quem estas idéias talvez não pareçam mais tão absurdas, dado à familiaridade que adquirem com estes personagens que se tornam íntimos habitantes de suas infâncias. Mas para nós, de uma outra geração e talvez para aqueles que leram Monteiro Lobato e que em suas fantasias viajaram para a Grécia Antiga com Pedrinho, Narizinho e Emília, talvez se lembrem de muitas figuras híbridas como Pégasus (o cavalo dotado de asas) e o Centauro ( que possuia tronco de homem e corpo de cavalo ) que não devem em nada às criaturas produzidas hoje em laboratórios.

 

Em vários mitos arcaicos sobre a criação do mundo, encontramos a questão da gestação fora do útero e da reprodução com exclusão do fator masculino como acontece no caso da clonagem. A prática científica repete e realiza o protótipo da idéia de uma mulher-mãe, matriz geradora independente. Em resumo,podemos dizer que vivemos hoje, em relação à velocidade dos avanços da ciência, uma situação de emparelhamento entre os domínios da realidade e da fantasia. Convivem atualmente, nos filmes de ficção científica que nos acostumamos a ver como projeções para o futuro e nos experimentos de laboratórios, situações absolutamente idênticas, emparelhadas no tempo, de maneira que fica parecendo aos nossos olhos incrédulos, que a realidade não passa de obra de ficção.

 

 

Diante das tecnociências as pessoas costumam ter uma sensação de fascínio e reverencia, ou de pânico – como se a criatura ameaçasse o criador e escapasse ao seu controle.  Na sua opinião, de que forma estas novas aquisições da ciência interferem sobre a forma do homem contemporâneo ver a si próprio e conceber o seu futuro ?

 

4)As  novas aquisições da ciência vem  desfazendo as fronteiras entre o humano, o divino e o animal, trazendo novos elementos para pensarmos quem somos. As descobertas da etologia mostram que muitas espécies de animais são dotadas de algum tipo de linguagem e de raciocínio. Os estudos genéticos apontam para uma semelhança de 98% entre nosso patrimônio genético e o de nosso primo Chimpanzé, apunhalando em cheio nosso narcisismo antropocêntrico. Isto nos abre a perspectiva de sermos mais humildes. Por outro lado, temos agora esta responsabilidade até então ao encargo dos deuses. Podemos recriar a vida, manipulando nossa idealizada forma humana, concebida à imagem e semelhança de Deus. Podemos roubar o fogo dos céus, como fez Prometeu,pois a luz que brilha nas estrelas tem origem nos mesmos processos nucleares realizados nos reatores aqui da terra.

 

O divino se faz de uma mistura de fascínio, reverência e medo. A natureza sempre foi considerada como algo divino e intocável. Qualquer intervenção sobre ela costuma ser considerada como um pecado irreparável. Assim, temos correntes de pensamento que se fundam na idéia de sacralidade da vida, provocando uma reação de medo e o desejo de proibir. Outra postura, igualmente comum, faz um elogio cego da técnica dentro de uma perspectiva de progresso a qualquer preço, promovendo uma exacerbação da vaidade e orgulho do Homem diante de seus feitos.

 

Neste campo onde jogam o homem e suas criações, se retornarmos aos mitos,podemos observar que as relações entre Homem e Deus, entre Criador e Criatura sempre foram marcadas por rivalidade e competição. Por isto não me agradam as metéforas utilizadas pela mídia para falar dos trabalhos que hoje se realizam, especialmente aqueles ligados à engenharia genética e à manipulação da vida.Homens querendo roubar o lugar de Deus. Estas metáforas são reveladoras de uma leitura do mundo que encarna esta ótica competitiva. Um dos grandes desafios do Homem contemporâneo na construção de uma ética para o futuro, consiste em reverter esta lógica competitiva e assumir uma postura solidária e responsável, na construção de um mundo melhor e mais fraterno.

 

Freud dizia que, onde quer que tenha chegado um homem de ciência, lá já havia estado antes um artista. Neste sentido,O Frankenstein  de Mary Shelley nos ensina muito sobre a relação entre o criador e a criatura. Neste conto magnífico, há uma divisão marcada entre ciência e ética, que ficam encarnadas por dois personagens, dois jóvens amigos inseparáveis, que são afastados pelos anseios mercantilistas do pai de um deles, justamente aquele que se interessava por questões ligadas à ética. Entregue a si mesmo, o outro jóvem, um cientista apaixonado, produz sua criatura monstruosa, para em seguida, abandoná-la. Estes três ingredientes, ciência, ética e lógica mercantilista estão entrelaçados em nossa cultura e quando a ciência se separa da ética, corre o risco de sucumbir aos anseios do polo comercial.  O jóvem cientista de Mary Shelley, privado de sua consciência moral, comete pelo menos uma falha imperdoável: não assumir a responsabilidade de sua criação. Ao abandoná-la, ao não reconhecê-la, ele a reduz a uma criatura monstruosa, gerando entre ambos um conflito inconciliável.

 

Não é possível nem desejável tentar deter os avanços da ciência, mas sim acompanhar criticamente suas produções.