Luís Alfredo Vidal de Carvalho; Uma visão Não-Autista (interdisciplinar) do Autismo

 

 

 

 

Uma Visão Não-Autista (interdisciplinar) do Autismo

 

Luís Alfredo Vidal de Carvalho

 

 COPPE/UFRJ – Programa de Engenharia de Sistemas e Computação

 

Caixa Postal 68511, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21945-970

E-mail: Okay@IamWaiting.com

 

Nivea de Carvalho Ferreira

 

COPPE/UFRJ – Programa de Engenharia de Sistemas e Computação

 

Caixa Postal 68511, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21945-970

 

 

Adriana Fiszman

 

Instituto de Psiquiatria – IPUB/UFRJ

Av Venceslau Brás 71 – Botafogo, Rio de Janeiro, RJ

E-mail: afiszman@rio.com.br

 

 

 

Unitermos:  Autismo,  Córtex,  Neurogênese,  Ciência Cognitiva,  Plasticidade Neuronal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Resumo

 

O autismo é um transtorno mental caracterizado por déficits na socialização, comunicação e imaginação. Em contraste com estas deficiências, as crianças autistas podem apresentar algumas capacidades isoladas especiais denominadas “ilhas de habilidades” como, por exemplo, a facilidade para a aritmética, música e desenho, além de excelente memória fotográfica, memória para dados e detalhes. A co-ocorrência de epilepsia e retardo mental volveu a atenção dos pesquisadores para as teorias neurobiológicas e cognitivas da síndrome. O presente trabalho propõe um modelo para esta síndrome que reune os aspectos Neurobiológicos, Psicológicos e Computacionais do autismo. Uma rede neuronal artificial capaz de definir mapas corticais — projeções sinápticas que preservam vizinhanças entre duas camadas de tecido neuronal — foi projetada para simular o processo de neurodesenvolvimento. Experimentos foram realizados reduzindo-se o nível da substância fator de crescimento neuronal liberada pelos neurônios, resultando em mapas corticais mal-desenvolvidos e sugerindo a causa da neurogênese aberrante presente no autismo. As simulações computacionais sugerem  que as regiões do cérebro responsáveis pela formação das representações de mais alto nível estão mal formadas nos pacientes autistas. A perda desta representação integrada do mundo pode resultar em déficits cognitivos específicos na socialização, comunicação e imaginação e pode, também, explicar algumas ilhas de habilidades. O modelo neuronal é baseado em achados biológicos e em teorias cognitivas recentes do autismo. Algumas relações entre as propriedades computacionais do modelo de rede neuronal e a teoria cognitiva do autismo denominada  Teoria da Fraca Coerência Central são estabelecidas, resultando em uma nova visão integrada para a etiologia do transtorno

 

 

I. Introdução

 

O Autismo é um transtorno psiquiátrico que foi descrito pela primeira vez por Eugen Bleuler em 1911. Suas observações sobre a perda do contato do paciente com a realidade e a sua grande dificuldade de comunicação, o fizeram utilizar o termo “autismo” para a doença. Mais tarde, em 1943, Leo Kanner observou quatro características fundamentais na doença: extrema solidão, falha no uso da linguagem para fins comunicativos, insistência na mesmice e tendência a repetir as mesmas ações de forma ritualizada (27). Ao mesmo tempo, porém independentemente, Hans Asperger utilizou o mesmo termo para se referir às características centrais do transtorno (3).

 

A percepção crescente do autismo como uma entidade nosológica distinta levou à intensificação das pesquisas e ao desenvolvimento dos primeiros critérios diagnósticos operacionalmente precisos por volta de 1978 (40, 43). Quase simultaneamente, outros autores (49) definiram o que eles pensavam ser as características centrais da doença: deficiências na socialização, comunicação e imaginação. Estas características formam uma tríade, pela sua co-ocorrência e por persistirem durante o desenvolvimento da criança, apesar de sua manifestação externa estar sujeita a mudanças.

 

A noção da tríade representa uma visão mais abrangente do espectro autista do que a apresentada por  Kanner e forma a base para os critérios diagnósticos atuais, como descrito na 4ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais, DSM-IV (2). Os critérios diagnósticos expressos no DSM-IV para Transtorno Autista são coerentes com os critérios contidos no CID-10 (10ª edição da Classificação Internacional de Doenças) (48) para Autismo Infantil, ambos listados sob o título genérico de Transtorno Invasivo do Desenvolvimento. Os critérios do DSM-IV e da CID-10 podem ser resumidos como perda qualitativa de comunicação social e padrões de comportamento e interesse restritos e repetitivos. Estas características devem ser evidentes até os três anos de idade, embora o diagnóstico seja feito, normalmente, muito mais tarde.

 

Juntamente com a perda da linguagem verbal e gestual, contato visual pobre, ecolalia, perseveração e baixa capacidade de generalização, alguns pacientes autistas (aproximadamente um caso em dez) demonstram habilidades excepcionais em atividades que envolvem cálculos matemáticos complexos, memória, desenho e música. Este desempenho elevado na realização de tarefas cognitivas isoladas é denominada “ilhas de habilidade”, não sendo um fenômeno dependente do aprendizado mas espontaneamente emergente. As ilhas de habilidade ainda não possuem uma  explicação e parecem ser  específicas do autismo, pois outros tipos de incapacidade mental ou transtorno do desenvolvimento não estão associados a este perfil cognitivo (20).

 

De acordo com o critério rigoroso aplicado por Kanner, o autismo é uma doença que aparece em quatro de cada 10.000 nascimentos. Com os critérios diagnósticos mais genéricos usados na prática clínica, a incidência é mais alta: um ou dois em 1.000 nascimentos, aproximadamente a mesma da síndrome de Down (13). A relação entre homens e mulheres acometidos pela doença é de 2 a 2.9 para 1, embora a preponderância nos homens seja maior quando utilizado o critério mais restrito de Kanner, com relação entre  os sexos  variando de 2.6 a 5.7 para 1.

 

O retardo mental é uma característica comumente presente no autismo, apesar de não versar na sua definição. Aproximadamente três-quartos da população autista tem o QI no limite definido como retardo mental. Apesar do QI global baixo, as habilidades intelectuais das crianças autistas mostram variações marcantes, caracterizadas por altos e baixos, conferindo um perfil espiculado (spiky profile) aos testes neuropsicológicos que intrigam os estudiosos ainda hoje.

 

Durante duas décadas após o artigo original de Kanner, os pesquisadores  tentaram descobrir uma causa orgânica para a doença mas, na ausência de claras evidências neurológicas, seus esforços foram em vão. Teorias psicodinâmicas surgiram responsabilizando os pais pelos sintomas de seus filhos e resultando numa infinidade de terapias ineficazes.

 

Duas grandes classes de condições médicas estão associadas ao autismo: as de base genética (como esclerose tuberosa e síndrome do X frágil) e as esboçadas em infecções pré, peri e pós-natais (como a embriopatia por rubéola e a encefalite por herpes). As condições genéticas podem representar traços familiares ou mutações espontâneas. Todos os estudos realizados com gêmeos dão suporte à existência de uma contribuição genética bastante significativa para o autismo. A principal hipótese para o modo de transmissão é a que propõe que a diátese é multifatorial, com vários genes contribuindo de forma aditiva para a dimensão de vulnerabilidade ao autismo (11).

 

Estudos neuropatológicos têm mostrado um aumento da densidade neuronal e a presença de neurônios menores que o normal no hipocampo, amígdala, córtex entorrinal e giro do cíngulo. Foi observada ainda uma perda neuronal na área de Broca e córtex cerebelar (5), além de ramificações dendríticas reduzidas nas células piramidais das áreas CA1 e CA4 do hipocampo (37). Imagens obtidas através de Ressonância Nuclear Magnética revelaram anormalidades no romboencéfalo e no telencéfalo consistentes com os achados neuropatológicos descritos acima (8). Aparentemente, existe uma variação na neuropatologia do autismo que inclui padrões anormais de conexão — provavelmente, devido a problemas   de migração neuronal durante o desenvolvimento (36) —, truncagem   do crescimento neuronal normal (6) ou neurogênese aberrante (8) que podem resultar no aumento ou na redução de neurônios e sinapses em diferentes regiões do cérebro.

 

Um modelo neuronal proposto há alguns anos atrás explorou achados relacionados ao aumento ou redução do número de neurônios e sinapses  nos cérebros de autistas (7). Simulações computacionais da rede neuronal então proposta mostraram que uma boa discriminação de estímulos é conseguida quando há um número grande de neurônios numa determinada camada da rede neuronal, enquanto propriedades de generalização são obtidas apenas quando poucos neurônios estão presentes nesta camada. O autor relacionou estes resultados já conhecidos da teoria de redes neuronais artificiais (42) com as deficiências de aquisição e generalização de conceitos e também com as ilhas de habilidades na discriminação de estímulos observada no autismo. A questão de como o circuito neuronal com muitos ou poucos neurônios surge no processo de neurodesenvolvimento não foi abordada neste modelo por ser muito metafórico com a realidade cerebral.

 

No presente trabalho, um modelo mais realista é proposto no qual. Baseado no processo biológico fundamental de competição neuronal, uma rede neuronal artificial  capaz de organizar sua estrutura em  função dos estímulos recebidos, como em um processo de neurodesenvolvimento, recrutará mais ou menos neurônios e fará mais ou menos sinapses, sugerindo a causa da neurogênese aberrante do autismo. Em linhas gerais, este trabalho mostra como a inibição neuronal excessiva em alguma fase do neurodesenvolvimento pode resultar em circuitos neuronais aberrantes com habilidades computacionais similares àquelas observadas no autismo. As simulações computacionais sugerem que regiões do cérebro responsáveis pela formação de representações de mais alto nível estão mal formadas nos pacientes autistas. A perda desta representação integrada do mundo pode levar às deficiências cognitivas peculiares na socialização, comunicação e imaginação, mas pode também explicar algumas ilhas de habilidades como excelente memória e discriminação de estímulos. O modelo neuronal é baseado em achados biológicos plausíveis e em teorias cognitivas do autismo recentemente desenvolvidas.

 

II. As Teorias Cognitivas do Autismo

 

A diversidade dos achados neuropatológicos aliada às falhas das teorias psicodinâmicas direcionou as pesquisas para a busca de pontes teóricas entre o cérebro autista e seu padrão comportamental. Uma das teorias cognitivas mais genéricas do autismo é baseada na incapacidade social imposta pela doença. É  proposto que três áreas centrais da interação social — imitação, atenção conjunta e relacionamento interpessoal — sejam  prejudicadas em alguma fase do desenvolvimento, resultando em sérias limitações. A base da adaptação social da criança reside na compreensão  de que as outras pessoas são iguais a ela, sendo assim capazes de compartilhar as mesmas impressões emocionais e cognitivas sobre qualquer objeto. Qualquer dificuldade neste processo chamado de relacionamento interpessoal, desde uma fase inicial do desenvolvimento da criança, pode causar, mais tarde, sérias deficiências sociais e comunicativas. Resultados de estudos realizados com crianças com cegueira congênita que apresentam um comportamento semelhante ao dos autistas corroboram esta hipótese (23). A atenção conjunta — processo de compartilhamento do mesmo foco de atenção através da alternância dos atos de direcionamento do olhar e do apontar entre um objeto e uma pessoa — também inexiste nas crianças autistas. A falha em utilizar o olhar como forma de comunicação, a pobreza na interpretação das expressões emocionais de outras pessoas e a incapacidade de compreensão da reação dos outros são características dos autistas que parecem estar relacionadas à deficiência da atenção conjunta (28). Finalmente, a imitação dos outros é um terceiro processo que as crianças autistas não desenvolvem corretamente. Uma criança normal imita as outras pessoas na tentativa de expressar ou sentir a mesma emoção que a outra pessoa demonstra. Imitar os outros é um tutorial básico que direciona a vida social (MELTZOFF e GOPNIK, 1993).

 

Outra importante teoria cognitiva do autismo assume a hipótese de que uma criança autista não pode representar os estados mentais dela mesma ou dos outros, ou seja, que não pode desenvolver um modelo ou “teoria” de sua mente e das mentes dos indivíduos com os quais se relaciona (4). Conseqüentemente, não é capaz de compreender ou predizer o comportamento das pessoas. Uma criança autista é capaz de transmitir uma mensagem a alguém e, posteriormente, não conseguir diferenciar quem sabe de quem ignora a mensagem transmitida. A falta de uma  “teoria da mente”  dos outros implica em que crianças autistas são severamente prejudicadas na sua capacidade de interpretação de estados mentais. Elas não podem participar de brincadeiras de faz-de-conta, pois estas exigem uma habilidade intuitiva para distinguir entre estados físicos (situações reais) e estados mentais fictícios.

 

Embora as deficiências na socialização, comunicação e imaginação definam as características centrais da síndrome do autismo, um comportamento estereotipado, repetitivo e restritivo também se faz presente. Este comportamento é muito similar ao apresentado por pacientes que sofrem lesões no lobo frontal, sugerindo, então, uma outra teoria cognitiva denominada  Teoria da Função Executiva. Entende-se por funções executivas os processos cognitivos como monitoramento do próprio desempenho, desligamento voluntário de um contexto, utilização apropriada da informação retroalimentada do ambiente, deslocamento voluntário da atenção, planejamento e inibição de ações inadequadas, entre outras. A hipótese desta teoria é que alguns transtornos do desenvolvimento causam distúrbios nos circuitos neuronais do lobo frontal ou do hipocampo ou ainda dos núcleos da base, regiões sabidamente associadas às questões da função executiva (47). Esta teoria é enfraquecida pelo fato de que algumas crianças têm ilhas de habilidades em tarefas que exigem a higidez do lobo frontal (9).

 

Todas as teorias descritas anteriormente são capazes de explicar as deficiências cognitivas, mas nenhuma delas se refere às ilhas de habilidades ou ao perfil de alto desempenho em determinados exames da avaliação neuropsicológica  em meio ao baixo desempenho em outros (perfil espiculado). A recentemente desenvolvida Teoria da Fraca Coerência Central afirma que as crianças autistas possuem um desempenho máximo em atividades que não requerem integração, mas sim segmentação da informação (14, 15). De acordo com esta teoria, o cérebro dos autistas tem um estilo cognitivo que favorece a segmentação devido à limitação ou impossibilidade de um processamento mais genérico (holístico) da informação (16). Quando processam informações verbais desconexas, as crianças autistas apresentam um desempenho superior ao das crianças normais, pois as crianças não-autistas têm a tendência de procurar por associações ou outras formas de integração da informação processada, o que implica  um desempenho baixa quando um material desconexo é apresentado na avaliação verbal. As crianças autistas também apresentam um bom desempenho em tarefas visuo-espaciais que requerem segmentação de imagens (44). Achados de redução da coerência lógica em narrativas e de desempenho superior em  testes de segmentação visuo-espacial aplicados a pais não-autistas de crianças autistas sugerem que a diminuição da coerência central pode ser transmitida geneticamente (32). É importante notar também que adultos com autismo que passam nos testes da teoria da mente demonstram padrões de fraca coerência central  (19). Este resultado fornece indícios de que a  fraca coerência central é uma característica independente e adicional do autismo, que, em princípio, não guarda relação óbvia com as deficências supostamente relacionadas à falta de uma “teoria da mente”.

 

III. O Processo de Competição e Cooperação Neuronal

 

Em meados do século XIX os cientistas Helmholtz e Mach estudaram vários fenômenos da percepção visual em humanos. Eles estavam particularmente interessados em ilusões de ótica como o fato de bordas e contornos entre partes claras e escuras de uma imagem tenderem a ser realçadas em relação às partes claras e escuras interiores da imagem. Eles explicaram a ilusão através da hipótese de que na retina humana as células são excitadas pela luz que converge para uma região central e inibidas pela luz que se projeta nas regiões vizinhas a esta. Quase um século depois, experimentos demonstraram que o olho de um caranguejo chamado Limulus (21) e alguns vertebrados (31) possuem uma estrutura concêntrica de cooperação central e competição lateral denominada on-center/off-surround. Nesta estrutura, cada neurônio está em cooperação, através de sinapses excitatórias, com neurônios da vizinhança imediata, ao mesmo tempo que está em competição, através de sinapses inibitórias, com neurônios que não pertencem a esta vizinhança. Existem ainda evidências experimentais de que este mesmo mecanismo se apresenta também nos sistemas nervosos central e periférico dos mamíferos. Aparentemente, as células corticais piramidais são conectadas segundo a estrutura on-center/off surround (46). Outras regiões do cérebro, como o hipocampo (1) e o cerebelo (10), também apresentam esta estrutura geneticamente imposta.

 

As estruturas de competição e cooperação entre neurônios são encontradas não apenas como inatas, mas também como parte de processos neuronais dinâmicos. Na verdade, a competição é essencial para o neurodesenvolvimento durante o qual os neurônios competem por determinadas substâncias químicas. Na formação sináptica, por exemplo, substâncias chamadas genericamente de fatores de crescimento neuronal são liberadas por  neurônios excitados e, através de difusão, alcançam as células vizinhas,  promovendo o crescimento sináptico. As células que recebem o fator de crescimento neuronal formam sinapses e sobrevivem, enquanto as células que não entram em contato com tais substâncias morrem (25, 26). Um neurônio que libera fator de crescimento neuronal guia o processo tri-dimensional de formação de sinapses, tornando-se um centro de convergência sináptica. Quando células próximas liberam diferentes fatores de crescimento neuronal em diferentes quantidades, vários centros de convergência são gerados, sendo estabelecida uma competição por sinapses entre eles. Pelo menos dois processos participam da dinâmica da formação sináptica:

 

·      neurônios pré-sinápticos que competem por fatores de crescimento neuronal para sobreviverem; e

 

·      neurônios pós-sinápticos que liberam essas substâncias competindo por sinapses que os manterão vivos através de seus estímulos aferentes.

 

Vale notar que, como um único neurônio é capaz de receber e liberar fatores de crescimento neuronal ao mesmo tempo, estes dois processos descritos anteriormente ocorrem efetivamente em cada neurônio. Conseqüentemente, se estabelece uma rede de informação que controla o desenvolvimento dos circuitos neuronais de maneira guiada pela estimulação do ambiente, registrando o mundo e plastificando o cérebro.

 

Os processos de competição descritos acima são essenciais para a formação de organizações neuronais chamadas mapas. Um mapa neuronal pode ser descrito como um circuito biológico composto por dois conjuntos de neurônios, denominados domínio e imagem, de tal forma que padrões de ativação similares do domínio são projetados em neurônios vizinhos na imagem. Em outras palavras, um mapa neuronal é uma projeção que transforma similaridades do domínio em relações espaciais na imagem. Estudos dos córtices visual (24), somatosensorial (35) e associativo (17) mostraram que pequenas regiões destes tecidos respondem a estímulos similares. De fato, estímulos como posição, orientação, cor, freqüência espacial, freqüência auditiva e significados (38, 39, 41, 45) são representados como mapas nos circuitos neuronais corticais.

 

A existência de mapas neuronais despertou a curiosidade dos cientistas nas últimas décadas, sendo de principal importância a questão de como estas estruturas surgem do padrão de conexão do tipo on-center/off-surround. Teorias computacionais trouxeram esclarecimentos importantes, pois mapas corticais foram artificialmente desenvolvidos a partir de regras simples de plasticidade neuronal em modelos computacionais de simulação (33). O modelo mais genérico dentre estes é o chamado Mapa Auto-Organizável (30) no qual duas camadas de tecido neuronal com n neurônios cada, correspondendo ao domínio e à imagem, são inicialmente conectadas aleatoriamente de maneira que cada neurônio i na imagem receba projeções sinápticas wi Î Rn de cada neurônio do domínio (Figura I). Neurônios no domínio não formam sinapses entre si e recebem as entradas sensoriais (estímulos), enquanto que neurônios na imagem estabelecem sinapses entre si, seguindo o padrão oncenter/off-surrond, i.e., excitação ou cooperação de curta distância e inibição ou competição de longa distância (Figura II).

 

 

 

As sinapses on-center/off-surround não se alteram durante o desenvolvimento do mapa pois são consideradas geneticamente estabelecidas, enquanto que as sinapses entre o domínio e a imagem são modificadas ao longo do processo. A cada vez que a rede neuronal entra em contato com um estímulo xk Î Rn , k=1, 2,… na sua camada domínio, existirá apenas um neurônio excitado i* na imagem, porque a cooperação de curta distância e a competição de longa distância fazem com que o neurônio mais excitado iniba os demais.

 

A posição r* do neurônio vencedor na imagem determina o quanto as sinapses serão modificadas. Sinapses dos neurônios próximos ao vencedor serão fortemente modificadas de tal forma que estes neurônios serão mais intensamente excitados pelo estímulo xk numa próxima oportunidade. As sinapses dos neurônios distantes do vencedor serão pouco modificadas ou permanecerão intactas, dependendo da dispersão s da função de vizinhança f(ri, r*) que estabelece o raio em torno do neurônio vencedor dentro do qual ocorre a cooperação e fora do qual ocorre a competição. O vetor ri Î Rnrepresenta a posição de um neurônio i genérico na camada imagem. Por este processo, cada neurônio na imagem será mais facilmente excitado pelo estímulo xk (facilitação sináptica) no futuro. O desenvolvimento do mapa se dá devido ao fato de que a quantidade de facilitação sináptica é inversamente proporcional à distância do neurônio vencedor. O processo de modificação sináptica Dtwipara cada neurônio i é repetido para cada passo de aprendizado t onde o estímulo xk Î Rn , k=1, 2, … é apresentado à rede neuronal, sendo dado por

 

 

Dtwi = r(t).f(ri, r*).(xk – wi),                                             (1)

 

 

onde r(t) é a taxa de modificação sináptica definida por

 

 

r(t) = r0.b(t-1);  0 < b < 1, t = 1, 2, …                                (2)

 

 

A taxa de modificação sináptica começa com um valor r0e decresce a cada iteração t com velocidade b.

 

A função simétrica de vizinhança f(ri, r*) tem a forma de uma curva gaussiana (Figura III) dada pela equação

 

 

f(ri, r*) = exp(-|| ri – r*||2 / 2s(t)2).                                      (3)

 

 

 

 

A dispersão inicial da gaussiana, s0, é alta para representar o fato de que todos os neurônios da imagem são considerados vizinhos (em cooperação) a princípio. Isto permite que a desorganização inicial das sinapses convirja para um padrão mais organizado onde a vizinhança é de grande importância. A cada vez que um estímulo é apresentado à camada imagem, esta vizinhança torna-se mais estreita, fazendo com que o mapa vá adquirindo mais e mais uma organização localizada. O cálculo de s(t) é dado por:

 

 

s(t) = s0.a(t – 1), 0 < a < 1, t = 1, 2, …                           (4)

 

 

onde a é uma taxa de decréscimo.

 

A forma com que a taxa de modificação sináptica decresce e a vizinhança se estreita é fundamental para o processo de formação do mapa. Quando a taxa de modificação sináptica decresce rapidamente, não há tempo suficiente para que as sinapses se modifiquem, fazendo com que a desorganização dada pela aleatoricidade inicial das sinapses permaneça até o final do processo. Por outro lado, quando a vizinhança se estreita muito rapidamente, o nível de cooperação neuronal necessária para a formação do mapa cortical não se faz presente, gerando relações de vizinhança  mal definidas no final da simulação. Podemos relacionar a função de vizinhança ao perfil de concentração do fator de crescimento neuronal no tecido cortical ao redor do neurônio que o liberou. Quando o equilíbrio dinâmico entre a liberação desta substância e a metabolização da mesma é alcançado em todo do tecido, devido ao processo de difusão, um perfil de concentração que decresce assintoticamente com a distância radial (ver Figura III) é atingido. O parâmetro s0 representa a quantidade de fator de crescimento neuronal liberado pelos neurônios no início do processo de neurodesenvolvimento.

 

O não entendimento do equacionamento matemático do modelo aqui desenvolvido não prejudica a compreensão  do texto e de seus resultados. Em realidade, o formalismo matemático foi incluido no texto apenas para mostrar ao leitor que a nova disciplina denominada Neurociência Computacional busca a definição de modelos e teorias quantificadoras, detalhistas e reducionistas do cérebro e da mente, seguindo a metodologia científica analítica Cartesiana, aceita como padrão nas ciências em geral. Por ser o cérebro um sistema complexo (complexo no sentido formal da Física-Matemática e não no sentido usual de nosso idioma), as equações do modelo não podem ser resolvidas mas somente simuladas no computador digital.

 

De uma maneira intuitiva, podemos afirmar que a equação (1) tenta modelar o processo de crescimento sináptico, representado pela variável  Dtwi,  que  depende  da capacidade do organismo  de formar  novas sinapses ( variável r(t) ),  do grau de competição e cooperação entre os neurônios durante o processo de neurogênese ( variável f(ri, r*) ) e também dos estímulos que afluem do ambiente  para o cérebro durante a neurogênese ( (xk  –  wi) ). A capacidade de formar novas sinapses é alta no início do processo de neurogênese e diminui à medida que os circuitos neuronais se consolidam. Por isto, a variável  r(t) na equação (2)  é modelada por uma função exponencial decrescente no tempo. O nível de competição e cooperação entre os neurônios durante o processo de neurogênese ( variável f(ri, r*) da equação (3))  é modelado por uma curva gaussiana cuja a dispersão (“largura”) é dada pela disponibilidade de fator de crescimento neuronal s(t). Este, por sua vez, é  muito disponível no início do neurodesenvolvimento,  tornando-se cada vez mais escasso à medida que o mapa cortical se consolida. Sendo assim, s(t) também é modelado por uma função exponencial decrescente (equação (4)) à semelhança da já descrita equação (2).

 

Uma maneira de avaliar a eficiência do processo de neurodesenvolvimento é calcular o valor total de mudanças sinápticas ocorridas. É sabido que mudanças em larga escala nos padrões sinápticos estão relacionadas com a boa formação de circuitos neuronais (25, 26). Quando as sinapses não são modificadas (fortalecidas ou enfraquecidas), o mapeamento final alcançado é bem próximo daquele apresentado no início do processo. A cada iteração t do algoritmo de auto-organização, o neurônio vencedor determina como as sinapses do neurônio i serão modificadas de acordo com a equação (1). A soma de todas as variações Dtwi durante o processo de plastificação corresponde à mudança total realizada nas sinapses que compõem o mapa:

 

 

S º å tå n ||Dtwi||.                                                         (5)

 

 

Na próxima seção, algumas simulações mostram como mapas anormais podem se desenvolver a partir de processos de auto-organização sináptica,  resultando em redes neuronais com habilidades computacionais capazes de explicar algumas características cognitivas das crianças autistas.

 

IV. Simulações Computacionais

 

Um mapa auto-organizável capaz de representar o desenvolvimento sináptico entre duas camadas corticais bidimensionais foi implementado computacionalmente na linguagem C.  Uma camada cortical de mais baixo nível (aqui denominada domínio) com 400 neurônios artificiais recebe os estímulos de entrada das áreas sensoriais e projeta suas saídas para a camada cortical de mais alto nível (chamada de imagem), também com 400 neurônios artificiais (ver Figura I). Um conjunto de 1.000 estímulos de entrada foi gerado aleatoriamente. Os limites de variação dos números aleatórios utilizados foram  variados quatro vezes para produzir quatro diferentes conjuntos de 250 estímulos cada. Estes conjuntos definem agrupamentos de padrões de entrada considerados similares, como pode ser visto na Figura IV, onde os estímulos de cada agrupamento são representados sobre uma camada cortical bidimensional por diferentes símbolos geométricos. Simulações computacionais realizadas em estações de trabalho RISC e apresentadas a seguir mostraram como mapas corticais artificiais mal desenvolvidos podem apresentar características que remontam à fenomenologia do autismo, principalmente às ilhas de habilidades.

 

 

Inicialmente, as sinapses entre as camadas corticais do domínio e da imagem são definidas aleatoriamente. Como conseqüência, os estímulos apresentados à camada domínio (mostrados na Figura IV) são projetados em posições aleatórias na camada imagem, como representado na Figura V. As similaridades entre os estímulos obviamente não são preservadas na camada cortical de mais alto nível (imagem), ou seja,  não existe uma representação em forma de mapa. Em todos os experimentos que se seguem, a camada domínio foi excitada 25 vezes com os 4 agrupamentos de 250 estímulos de uma maneira aleatória. Os parâmetros r0, a e b são mantidos constantes com valores 0.8, 0.99 e 0.99, respectivamente, para todas as simulações.

 

 

 

Como o parâmetro s0 representa a quantidade de fator de crescimento neuronal liberada pelos neurônios da camada imagem no início do processo de neurodesenvolvimento, em uma  primeira simulação este parâmetro foi inicializado com um valor alto (s0= 4.0), suficiente para o correto desenvolvimento do mapa cortical. Após a execução do processo simulado de neurodesenvolvimento, os quatro agrupamentos de estímulos presentes na camada domínio (Figura IV) foram mapeados em quatro regiões diferentes e bem definidas da imagem, como mostra a Figura VI. As sinapses entre as duas camada corticais foram alteradas em um total S igual a 11.382,  transformando o mapa inicialmente desorganizado (Figura V) em um mapa claramente organizado (Fgura VI). Podemos também observar que os 250 estímulos de cada agrupamento foram mapeados em apenas 100 neurônios (em média) na camada imagem. Na verdade, qualquer outro estímulo nunca antes apresentado à rede neuronal, mas que seja similar aos outros 250 estímulos de um agrupamento, será mapeado diretamente sobre a região da camada cortical da imagem responsável pela representação deste agrupamento. Como o cérebro está exposto a uma infinidade de estímulos parecidos durante toda a nossa vida, podemos concluir que os mapas corticais são uma estrutura inteligente capaz de representar uma grande gama de instâncias ou variações de estímulos em uma região reduzida, bem definida e constante do córtex. Em outras palavras, os mapas neuronais são capazes de, baseados em poucos exemplos ou instâncias, criar ou representar uma categoria inteira no córtex. Uma vantagem direta desta capacidade é a economia realizada, pois se cada estímulo fosse representado por um neurônio específico, bilhões dessas células não seriam suficientes para representar toda uma vida de estímulações.

 

 

A construção deste mapas só é possível  porque os neurônios corticais e suas regras de plasticidade sináptica geram um circuito neurocomputacional capaz de extrair as características comuns dos estímulos. O mapa cortical considera as características comuns como as componentes principais (ou a coerência central) dos estímulos, enquanto que as características não-comuns, que poderiam dificultar o processo de categorização, são descartadas. Mapas corticais são possíveis porque seus circuitos generalizam os estímulos que lhes são apresentados, ou seja eles consideram as características gerais (comuns ou centrais) como as que realmente importam, enquanto as especificidades (detalhes) de cada estímulo não são computadas.

 

Um cérebro normal, constituído por mapas corticais bem-formados, extrai constantemente e de forma natural a coerência central de cada estímulo que atinge o córtex. Como vivemos em um mundo complexo e de freqüente mudança, encontrar as características principais de estímulos é uma tarefa cognitiva importante para o reconhecimento de que novas situações são, de alguma forma, parecidas com outras experiências já vividas anteriormente e para as quais  possuímos  respostas prontas.

 

Uma vez que as propriedades computacionais de mapas corticais bem-formados foram analisadas, verificaremos, através da descrição das próximas simulações, como mapas mal-formados possuem propriedades computacionais semelhantes às mentes autistas. Para isso, vamos decrescer o valor de s0  (a quantidade de fator de crescimento neuronal liberada inicialmente) em cada simulação, mostrando como a redução desta substância resulta na alteração dos mapas corticais e suas habilidades computacionais. Iniciando com s0 = 3.5, a uma redução de 12,5% em relação à simulação anterior que corresponde ao mapa bem formado, e partindo da mesma inicialização aleatória das sinapses (Figura V), chega-se ao mapa mostrado na Figura VII.

 

 

 Comparando os resultados obtidos com estas duas simulações (Figuras VI e VII), podemos observar que nesta última houve uma reorganização do mapeamento obtido anteriormente. As regiões responsáveis pela representação dos agrupamentos assumiram formas e disposições relativas diferentes na camada imagem. No entanto, as propriedades computacionais, e conseqüentemente cognitivas, são as mesmas pois houve um reconhecimento das características comuns dos estímulos que foram classificados ou categorizados em regiões bem definidas do córtex simulado (imagem). Olhando mais detalhadamente para o mapa da Figura VII, é possível observar que alguns estímulos foram classificados erradamente em categorias diferentes no canto superior direito e inferior esquerdo da imagem.

 

 

Reduzindo-se ainda mais o valor de s0, atribuindo-lhe agora o valor de 2.5 que representa uma redução de 37,5% em relação a s0 = 4.0 do mapa bem-formado, obtivemos como resultado final o mapa mostrado na Figura VIII. Nesta,  podemos notar que os agrupamentos não formam mais uma região bem definida, mas, ao contrário, estão particionados em uma região grande e outra região menor. Como o número de estímulos que estão dispostos fora do agrupamento principal de cada categoria é alto, não podemos mais utilizar o conceito de classificação incorreta mencionado anteriormente. Na realidade, os agrupamentos foram divididos ao meio. Do ponto de vista computacional, o processo de auto-organização extraiu dos estímulos não somente  suas características comuns mas também algumas especificidades. Estas fazem com que os estímulos sejam diferenciados, forçando o mapa a criar uma nova categoria para representá-los  pois estes já não podem mais ser considerados como pertencentes a uma mesma categoria, como tinham sido anteriormente. Assim, podemos dizer que a redução do fator de crescimento neuronal liberado gera um mapa mais discriminativo, fazendo emergir uma propriedade de segmentação ou discriminação em lugar da propriedade de generalização ou determinação da coerência central. Os detalhes que eram antes descartados são, agora, considerados, adicionando uma nova dimensão na definição da similaridade entre os estímulos.

 

 

Estímulos que antes formavam um conjunto de padrões similares e, portanto, eram projetados sobre a mesma área cortical são, agora, devido a um aumento da capacidade discriminativa do mapa, percebidos como diferentes o suficiente para requererem um novo agrupamento para representá-los. A consequência cognitiva deste estilo computacional emergente é que uma situação que era facilmente reconhecida e processada como uma experiência já conhecida e para a qual uma resposta já existia, é agora tratada como um novo evento para o qual a resposta ainda deve ser construída.

 

 

 

Quando atribuimos a s0 um valor ainda menor de 1.5, temos  mais evidenciada a capacidade discriminativa do mapa (Figura IX). Cada agrupamento é representado na camada imagem por diferentes categorias, dispostas em áreas corticais distantes.

 

 

Uma redução ainda mais extrema do fator de crescimento neuronal, representado por s0 = 1.0, produz um mapa completamente segmentado, como pode ser visto na Figura X. Esta última simulação mostra um mapa dual da primeira simulação. Mapas com alta capacidade de discriminação e fraca extração da coerência central (Figura X) representam o outro lado da moeda em relação aos mapas com forte detecção da coerência central (ou alta capacidade de generalização) (Figura VI). Entre estes dois extremos existe uma infinidade de mapas auto-organizáveis, possivelmente representantes da mesma síndrome neurológica em seus diferentes níveis de prejuízo mental. A curva apresentada na Figura XI mostra como a mudança sináptica total S varia com a liberação do fator de crescimento neuronal no início do processo de neurodesenvolvimento simulado. À medida em que reduzimos o valor de s0, a mudança sináptica total também é reduzida.

 

 

Com estes resultados, é possível concluir que a fraca extração da coerência central é consequência do baixo nível de fator de crescimento neuronal. Os mapas mal-formados são o resultado de sinapses que praticamente não foram alteradas (como indica o baixo valor de S) e, portanto, não submetidas ao processo de fortalecimento e consolidação ou enfraquecimento e eliminação (26) normais no neurodesenvolvimento. Os baixos valores de S encontrados nos mapas com fraca coerência central desenvolvidos aqui estão de acordo com os estudos que afirmam possuírem  os autistas um número excessivo de sinapes (29).

 

 

V. Análise dos Resultados

 

As simulações realizadas aqui permitem a extrapolação de seus resultados para a cognição e a sintomatologia do autismo. Para iniciarmos nossa análise, mencionamos que alguns autores notaram que “crianças autistas não tendem a integrar experiências atuais com outras previamente vividas” (22) e também que “não se atêm às informações principais, prestando atenção nas que são irrelevantes” (18). Nas simulações realizadas com uma quantidadade de fator de crescimento neuronal reduzida, o mapa resultante mostrou uma menor capacidade de generalização e maior discriminação, representando, respectivamente, as características de falta de integração e aumento na atenção aos detalhes das informações. Mapas mais discriminativos estão relacionados com o estilo cognitivo onde os estímulos são segmentados e registrados como função de sua especificidade. Conseqüentemente, a cognição será orientada para o reconhecimento de partes, promovendo um comportamento caracterizado pela inflexibilidade e precisão excessiva. Para as crianças autistas as ações devem ser sempre realizadas da mesma maneira, do contrário não serão corretamente interpretadas. A criança autista resiste a caminhos diferentes para a escola. Ambientes organizados de forma ligeiramente diferentes não são reconhecidos como os mesmos, e objetos devem sempre estar dispostos da mesma maneira espacial para que elas os possam reconhecer.

 

Outra conseqüência cognitiva presente nos mapas discriminativos é o fato de que as informações (estímulos) não são categorizadas, mas representadas por segmentos ou instâncias. Neste caso, o princípio da economia realizada pelos mapas corticais é quebrado,  e uma grande quantidade de neurônios será necessária para representar conceitos que seriam normalmente mapeados em regiões menores e mais bem definidas. Quando largas regiões corticais são responsáveis pela representação de conceitos muito específicos, surge um fenômeno computacional denominado explosão combinatória caracterizado pelo processamento ineficiente das informações devido a uma disponibilidade limitada de  hardware (neurônios). Este fenômeno  poderia resultar no baixo QI e no interesse restrito a  poucos assuntos que se observam nas crianças autistas.

 

Por outro lado, mapas altamente discriminativos permitem uma segmentação automática e rápida da informação, bem como a representação de detalhes. Possivelmente, esta é a razão pela qual as crianças autistas apresentam ilhas de habilidades como a excelente memória bruta (memória para nomes, telefones, etc…),   grande capacidade de resolução de jogos onde as partes de um contexto devem ser rapidamente analisadas, execução de desenhos detalhados e realistas e alta discriminação de tons e sons musicais (12).

 

Lembrando que o processamento cognitivo é obtido através de uma série de mapas corticais hierárquicos, onde a entrada de um mapa de mais alto nível é a saída do mapa de nível imediatamente inferior, é impossível prever o que acontece quando o primeiro mapa na hierarquia classifica estímulos similares em regiões corticais diferentes. Talvez, a mente do autista não possa desenvolver regras de linguagem por não possuir o mapa cortical de mais alto nível apropriado (39) que depende de mapas de mais baixo nível bem-formados. Assim também seria explicada a dificuldade de interação social apresentada por pacientes autistas que pode ser resultante da impossibilidade de reconhecimento de expressões faciais e emocionais, tarefas que exigem a interpretação de contexto e integração de informação que ocorrem nos mapas de mais alto nível.

 

VI. Conclusões

 

O autismo é caracterizado por deficiência na socialização, comunicação e imaginação e também por talentos excepcionais para tarefas que envolvem memória ou discriminação sensorial. Existem muitas teorias cognitivas para a doença, mas apenas uma delas, a teoria da fraca coerência central, é capaz de explicar as ilhas de habilidades.

 

Após uma detalhada análise do conceito de mapas corticais, foi apresentado um algoritmo de auto-organização para simular o processo de neurodesenvolvimento de mapas neuronais. Algumas simulações realizadas mostraram como os mapas se desenvolvem e quais são seus principais parâmetros de controle. Um destes parâmetros está associado a uma substância química denominada fator de crescimento neuronal. As simulações mostraram como a quantidade desta substância, liberada pelos neurônios durante o processo de neurodesenvolvimento, é capaz de gerar mapas com capacidade de generalização diferentes.

 

As propriedades computacionais destes mapas foram analisadas e relacionadas com a  teoria cognitiva da fraca coerência central do autismo. A falta de fator de crescimento neuronal produziu mapas com baixa propriedade de generalização ou fraca extração da coerência central. Deficiências cognitivas e, o mais importante, habilidades cognitivas (ilhas de habilidades) observadas nos autistas foram explicadas por analogias entre as propriedades computacionais dos mapas apresentados e a teoria da fraca coerência central. O objetivo do trabalho é propor uma teoria neurobiológica do autismo,  afirmando que o transtorno é o resultado da única expressão cognitiva possível para um cérebro constituído de mapas corticais altamente discriminativos.  Embora estas simulações e analogias sejam importantes para o entendimento do autismo do ponto de vista neurobiológico, a existência de mapas corticais altamente discriminativos nos cérebros autistas deve ser verificada experimentalmente. Na realidade, o principal objetivo da modelagem e simulação computacional em Neurologia e Psiquiatria é exatamente estabelecer direções para a pesquisa clínica e experimental.

 

 

 

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FIGURAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura I – Um mapa auto-organizável com duas camadas bidimensionais de neurônios.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura II – O padrão sináptico On-center/Off-surround da camada imagem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura III – A função de vizinhança representando a concentração de fator de

 

                   crescimento neuronal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura IV – O conjunto de 1.000 estímulos dividido em 4 agrupamentos de 250

 

        estímulos cada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura V – Devido ao caráter aleatório do padrão sináptico inicial, os estímulos

 

                  são projetados na camada imagem de maneira desorganizada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura VI – Um mapa cortical bem-formado gerado com fator de crescimento

 

                    neuronal suficiente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura VII – Um mapa cortical desenvolvido com quantidade reduzida de fator de

 

                     crescimento neuronal (s0 =  3.5). Alguns estímulos são classificados

 

                     incorretamente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura VIII –  Outro mapa cortical desenvolvido a partir de uma redução ainda mais

 

                      drástica da quantidade de fator de crecimento neuronal (s0 =  2.5).

 

                      Alguns agrupamentos são divididos ao meio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura IX – Uma menor quantidade de fator de crescimento neuronal liberada (s0 = 1.5)

 

                  gera uma mapa mais discriminativo. Os agrupamentos são classificados

 

                  em várias categorias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura X – Um redução extrema de fator de crescimento neuronal liberado (s0 = 1.0)

 

                 gera um mapa completamente segmentado.

 

 

s0

 

 

 

 

     S

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figure XI – A mudança sináptica total como uma função da quantidade de fator de

 

                    crescimento neuronal liberado.