Tereza Estarque “Narcisismo: Amor próprio ou impróprio?”

Autora: Tereza Mendonça Estarque, Psicanalista, Dra em Ciências Sociais, Fundadora e Presidente do Instituto de Estudos da Complexidade.

Narcisismo de vida ou de morte: Amor próprio ou impróprio ?

 

A difusão da psicanálise na cultura propriciou que uma série de conceitos fossem assimilados ao tecido social, implicando necessariamente algumas distorções ou, na maioria das vezes, o privilégio de um dos aspectos do conceito em detrimento de outros.

 

O narcisismo, conceito psicanalítico cujo nome Freud tomou de empréstimo ao mito grego de Narciso, o jóvem que enamorou-se de sua própria imagem espelhada na superfície de um lago, ficou associado, em nossa cultura, à idéia de vaidade que, segundo o Dictionaire Théologique Catholique seria, dentre os sete pecados capitais, o mais grave, pois  todos os outros derivariam deste.

 

Conforme o mito explicita, a idéia de narcisismo está vinculada à questão da imagem e esta, por sua vez, à noção de identidade. A imagem corporal é o primeiro esboço sobre o qual irão se desenhar, posteriormente, as identificações constitutivas da personalidade.

 

Assim sendo, ao abordarmos o tema do narcisismo, não podemos deixar de fazer uma reflexão acerca da função primordial da imagem no mundo contemporâneo, motivo pelo qual alguns teóricos enfatizam que vivemos no interior de uma cultura do narcisismo, entendendo-se por isto, uma cultura voltada para a imagem e para o individualismo.

Lembramos o comercial que dizia: “ imagem é nada, sede é tudo. Obedeça sua sede, beba o refrigerante que você deseja.” O que se pode depreender desta palavra de órdem? Obedeça a sua sede, sua pulsão, seu desejo e não àquilo que um outro refrigerante  promete fazer por sua imagem.É tão grande o poder da imagem em nossa cultura midiática, que o sucesso do referido comercial decorre da estratégia de utilizar a antítese, imagem é nada, para antagonizar seus concorrentes que afirmam: imagem é tudo.

 

Se a ênfase na imagem é tudo, alimentando o que poderíamos chamar de uma vertente patológica do narcisismo, cresce no Brasil uma cultura de idolatria ao corpo perfeito, alavancando uma economia da medicina cosmética que movimenta elevadas quantias em dinheiro, promovendo um efeito avalanche que colocou nosso país como campeão no ranking das cirurgias plásticas de caráter exclusivamente estético realizadas no mundo, ultrapassando os Estados Unidos que, até então, detinha este título.

 

Quanto ao aspecto do individualismo observamos que se encontra associado à idéia de egoísmo que, por vezes, é utilizado como sinônimo para o pecado da vaidade. Ego-ismo, amor exclusivo a si mesmo opõe-se a altru-ismo, amor ao outro. É esta exclusividade do amor a si mesmo com exclusão do outro, que vai tornar impróprio este amor.

 

Que dizer então do amor próprio? Quando se diz de alguém que ele não tem amor próprio, que não se orgulha de si mesmo, queremos dizer que esta pessoa tem uma baixa auto estima, ou, em linguagem psicanalítica, uma falha narcísica. A falta do amor próprio, do amor bem medido por si mesmo, conduz ao aprisionamento do indivíduo no desejo do outro, alienando-se nele, dessubjetivando-se e passando, irremediavelmente, à condição de objeto. É neste sentido que é preciso afirmar que o narcisismo pode alimentar a vida ou a morte.

 

A vivência do narcisismo na infância, corresponde à um momento de júbilo, onde a percepção opera uma unificação do corpo experimentado até então como um corpo fragmentado. Momento onde se vive a alegria de saber-se uno e de reconhecer-se no espelho como um eu, de poder nomear-se na primeira pessoa, constituindo a instância psíquica conhecida como ego.

 

Vemos então, que os  conceitos de narcisismo, ego e identidade encontram-se estreitamente ligados. É pelo olhar do outro, especialmente este outro materno que encarna todas as nossas possibilidades de satisfação, prazer e segurança, que aprendemos a saber quem somos. Se o olhar deste Outro brilha por nós e se em algum momento pudermos nos sentir capazes de preencher  este Outro de alegria, estaremos constituindo nosso amor próprio, aprendendo a ler no espelho do olhar do Outro, que nossa existência vale a pena e tem um sentido, nem que este sentido seja, num primeiro momento, preencher os anseios deste outro que significa tudo para nós, condição mesma de nossa existência. Mas não podemos parar por aí, estancando neste lugar de colagem onde nosso desejo não se distingue nem se diferencia, mas, ao contrário, se reduz ao desejo do Outro.

 

Queremos dizer com isto que esta relação narcísica que envolve a mãe e o bebê de maneira indiferenciada, especular e exclusiva, corresponde à uma necessidade para que se constitua no sujeito humano, seu amor próprio. É fundamental que em algum momento a criança possa sentir-se majestosa, como também  é primordial, para que este amor não se torne impróprio, mortífero e excludente, que um terceiro termo, aquele que virá exercer a Função Paterna, interdite esta vivência de satisfação absoluta, procedendo cirurgicamente a uma ferida narcísica. Ferir este amor para que ele se abra ao outro e faça laços sociais. Quando o amor próprio que se forma a partir do narcisismo se desencaminha, pela falência desta Lei Simbólica da Cultura, que em psicanálise se encontra ligada ao conceito de Nome do Pai, a travessia do individualismo à individualidade e do  egoísmo ao altruismo, torna-se difícil.

 

O narcisismo mortífero se alastra do nível individual para os processos grupais, atingindo fenômenos sociais de grande alcance e da maior gravidade para o destino da humanidade. Absolutismo, totalitarismo, intransigência, intolerância, encontram suas raízes em caminhos complexos. Por vezes não foi possível ferir este amor absoluto, favorecendo o recrudescimento da tirania, por outras não foi possível tratar a ferida que, permanecendo aberta fomenta a vitória do ressentimento, da inveja e da competição desmedida. Numa perspectiva transgeracional de desnutrição amorosa, a semente deste amor pode não chegar a ser transmitida e, assim, por faltar à mãe, este amor também não germinará no filho, dando lugar à  depressão e do desânimo para o combate requerido pela vida.

 

O desafio seria então, nesta dialógica entre vida e morte, poder transformar o sofrimento deste amor ferido em compaixão, em arte compartilhada de conviver com as cicatrizes, vivenciando-as como fruto deste combate entre vida e morte e transformá-las em resto, à partir do qual, toda criação humana possa se abrir em favor da vida.

 

É necessário ainda dizer que a vida se joga entre a necessidade de  movimento e as exigências de permanência. Do ponto de vista psíquico, seria impossível o dar-se conta permanente de que vivemos no puro devir. As descobertas mais recentes das ciências físicas e biológicas, sobre o macro e o micro cosmos, apontam para o fato de que o mundo percebido por nossa retina não se parece em nada com aqueles aos quais podemos ter acesso pelas lentes dos potentes microscópios e telescópios disponíveis nos laboratórios. Estes instrumentos nos revelam um mundo de instabilidade e movimento permanente, realidade insuportável para o ego humano.

 

O que seria de nós, se num cenário de ficção científica, nos olhássemos no espelho, com as lentes de um destes instrumentos implantado em nossas retinas? Lá não encontraríamos nossa amada e familiar imagem, que a medicina cosmética luta por manter inalterada.Lá não se justificariam os discursos contemporâneos que tentam nos vender todas as formas possíveis de seguros, para que possamos ter a garantia de um mínimo de mudança em nossas vidas. Ao contrário, veríamos um turbilhão de movimento e transformação que nos lançaria no estranhamento de nós mesmos e nos abismos da psicose.

 

Uma das principais funções de nosso ego narcísico é nos fornecer uma ilusão de permanência e continuidade que nos permita tocar a vida no dia a dia do tempo medido por nossos relógios. Assim, quanto mais se aguça o sugadouro mortífero da velocidade devoradora dos acontecimentos de um mundo onde tudo é consumido e se torna supérfluo em tempo récorde, maior a tendência a um enrigecimento deste ego narcísico que tentará sempre mediar os conflitos entre nossos impulsos mais intensos e as exigências da realidade.

 

Dentro desta perspectiva, torna-se fundamental pensar este ego narcísico, como importante fonte de resistência às mudanças, o que, por um lado, pode desacelerar de algum modo o enlouquecimento dos processos de consumo desenfreado, mas por outro, torna-se também um importante obstáculo às mudancas requeridas tanto na esfera individual, quanto no âmbito do pensamento científico e moral.

 

O pensar complexo, vem se esforçando e se afirmando como forma possível de abordar a realidade de maneira mais abrangente e menos redutora. Acreditamos que o exercício deste pensamento encontre, nos ideais de permanência do ego narcísico, um importante obstáculo epistemológico pois, por maior que seja o nível de informação teórica ou erudição de um pensador, isto não será o bastante para que ele possa aceitar a plasticidade inexorável do real e a impossibilidade da totalização do saber.

 

Uma operação de natureza psíquica, que podemos formular em termos de um desapego em relação às exigências egóicas de manutenção de estabilidade e dos ideais de permanência, se faz necessária ao  favorecimento de uma reforma do pensamento que possa atender às necessidades de compreender o mundo como um complexo interligado, onde nada pode ser abordado se retirado do contexto que lhe confere sentido. A humildade diante da complexidade da vida e a consciência dos limites do conhecimento não implicam necessariamente um sentimento de impotência, mas devem estimular a curiosidade e alegria da busca permanente de respostas que serão sempre incompletas.

 

Dentro desta perspectiva, vemos como função ética da psicanálise enquanto prática extensiva às questões da cultura e da pólis, contribuir para que seja viável suportar a angústia produzida pela incerteza e pelo não saber, mantendo no espírito humano, uma abertura possível para o devir e para a criação.