Tereza Estarque. “Sustentabilidade da Vida: reflexões após o 11 de setembro” ( palestra proferida no Complexus PUC/SP -2002)

“SUSTENTABILIDADE DA VIDA”: reflexões após o 11 de setembro[1]

Se a morte sempre foi um acontecimento espantoso para os seres humanos, as concepções atuais das ciências físicas e biológicas apresentam-nos a vida como um fenômeno ainda mais escandaloso, se o tomarmos em relação à entropia crescente da ordem física. A vida revela um caráter paradoxal, “uma espécie de inversão do curso da entropia crescente, que, no entanto, obedece ao princípio de degradação, já que todos os seres vivos são mortais. ”[2]

 Erwin Schrödinger, físico, Prêmio Nobel em 1933, procura refletir sobre os eventos que ocorrem no espaço-tempo interior a um organismo, segundo uma abordagem físico-química[3]. Seguindo este caminho, confronta-nos com uma realidade impactante, que nos revela um fato surpreendente: no nível elementar da matéria, não existe distinção entre o vivo e o não vivo. Somos todos constituídos de átomos. Nenhuma diferença, portanto, no nível atômico, entre o mais belo pássaro, o cérebro de um brilhante cientista e uma estúpida bigorna.

Esta realidade desconcertante vem reenviando diferentes pensadores e cientistas à pergunta de Schrödinger: afinal, o que é a vida? 50 anos depois, a questão é recolocada em coletânea…. E em 1998, é a vez de Lynn Margulis e Dorian Sagan se voltarem para o eterno enigma, este misterioso fenômeno em torno do qual foram produzidas especulações de diversas naturezas.

No relato bíblico da Gênesis, o espírito da vida é expirado por Deus sobre a imagem de barro que havia construído à sua semelhança. O que é então, este sopro da vida que é capaz de animar uma imagem de barro e que, ao abandonar os corpos, leva consigo seu calor e expressividade, transforma-os em corpos inertes e gelados. Michel Angelo teria dito ao seu Moisés esculpido em pedra, Porque não falas? Faltou-lhe, apesar de toda a qualidade artística, a capacidade de lançar sobre ela o miraculoso sopro.

Em nossa cultura, o sopro da vida ficou ao encargo de uma transcendência. Foi associado à existência de uma alma ou espírito que, pela vontade desta transcendência, vem animar o corpo ainda embrionário.

A hipótese da animação, injeção da alma sobre o corpo, nunca esteve isenta de controvérsias. A primeira comunidade cristã, debruçou-se sobre a distinção entre animação imediata, segundo a qual Deus infunde a alma logo na concepção e animação retardada, tese segundo a qual a alma é infundida somente após um determinado tempo.Estas duas posições distintas conviveram, em diferentes momentos históricos e estiveram a serviço de múltiplas controvérsias morais.

A hipótese da animação imediata favoreceu os interesses canônicos pastorais, permitindo maior coerência na condenação do aborto e da contracepção veiculando a idéia da sacralidade da vida e alcançando, nos dias de hoje, o cerne dos delicados debates  envolvendo pesquisas com embriões humanos. Porém, segundo Mauricio Mori, no plano teórico doutrinal, a Igreja Católica nunca erradicou a idéia da animação retardada. Afirma ainda que, desde as Decretais de Gregório IX ( 1234 )e a Sedes Apostólica ( 1591) de Gregório XIV, até mesmo após a proclamação do dogma da Imaculada Concepção, em 1854, momento em que a Igreja teria aderido definitivamente à animação imediata, Pio IX teria mantido sua crença na tese da animação retardada, que teve ainda em São Tomás de Aquino ( 1225-1274 ), um forte defensor, advogando o advento da alma como um processo de complexidade crescente no interior da matéria.

Esta idéia tomista aproxima-se da perspectiva das ciências da complexidade. “ a história do Universo não é a história da degradação de uma órdem inicial poderosamente organizada. Ao contrário, é a edificação da pirâmida da complexidade no decorrer das eras.”[4] Sabe-se que a vida nem sempre existiu: a matéria despertou de um caos primordial [5],  decorrente de uma extraordinária constituição de felizes combinações dos átomos de carbonos, que foram se organizando em níveis crescentes de complexidade.

O aspecto paradoxal da vida reside no fato de que ela extraia sua força da constante atividade de fazer e desfazer ligações: encontramo-nos defrontados, por um lado, com o que Reeves chama pulsão de vida do universo, entendida como uma febre de organizacão da matéria ou um princípio de complexidade. De outro lado, percebemos que este mesmo princípio criador engendra, ao mesmo tempo, uma pulsão de morte. Como conciliar esta tendência observável e espontânea à dispersão, à desordem e ao esfriamento, com a sobreposição crescente dos níveis de complexidade da matéria?

 Perspectivas mais recentes da cosmologia indicam que a matéria  possui, desde os tempos mais remotos, todas as informações necessárias para iniciar e prosseguir essa ascensão dos níveis de complexidade necessários para a aquisição da vida. Contudo, a ciência não sabe ainda responder porque a matéria primordial continha em si, todas estas informações. As forças que existem e atuam entre as partículas são potencialmente capazes de estabelecer ligações e são responsáveis, em parte, por estas informações. Agem no sentido de produzir uma coesão, unificando as partículas até eliminar qualquer diversidade. Contudo, o segredo da diversidade está na ação de uma força em um contexto de desequilíbrio. A estas perturbações de um equilíbrio gerado por forças de coesão, dá-se o nome de pulsão de morte, conceito de extrema relevãncia também na teoria psicanalítica. Em Além do Princípio de Prazer ( 1920), Freud introduziu a grande oposição pulsional que sustentaria até o final de sua obra: Eros, força do amor e da ligação e Thánatos, força de destruição, que pode conduzir à morte física ou  psíquica, pela mesmice derivada da compulsão à repetição. Ao mesmo tempo, a pulsão de morte representa uma força de transformação, por sua capacidade de agir de forma violenta sobre as unidades estáveis e resistentes à mudança.

Este imbricamento entre vida e morte, ordem e desordem, equilíbrio e turbulência, reencontram-se na física, na biologia, na psicanálise, nas artes, na filosofia ou em qualquer forma de abordagem do real. A sustentabilidade da vida se constrói no interior deste combate travado entre forças de coesão-pulsão de vida e forças disrruptivas-pulsão de morte. Estas forças encontram-se indissoluvelmente ligadas num delicado equilíbrio instável, não sendo possível privilegiar uma sobre a outra. A conhecida fórmula de Heráclito, muito cara aos pensadores da complexidade reafirma: viver de morte e morrer de vida. Ou como nos anuncia Freud: Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.[6]

Freud[7] advoga a assunção de uma vida em permanente risco de morte, afirmando que há um empobrecimento da vida quando ela própria não pode ser arriscada. Assim, a tendência a excluir a morte de nossos projetos de vida traz em seu rastro muitas outras renúncias e exclusões. E conclui poetizando navegar é preciso, viver não é preciso. A sustentabilidade da vida não requer, como poderíamos erroneamente supor, uma adesão irrestrita às formas de garantia e segurança. Por tratar-se, em sua máxima saúde, de um equilíbrio instável, a saúde da vida pressupõe uma relativização tanto do risco como forma de viver o presente, quanto dos dispositivos de segurança utilizados para prevenir o medo em relação ao porvir.

A vida se sustenta por uma rede de relações inteligentemente articuladas, de maneira que a perda de um fio pode desmantelar todo um segmento do tecido. Isto fica claro atualmente, no interior de um pensamento ecológico que coloca em destaque a interdependência das partes constituintes de um ecossistema, suas intrincadas relações com os fatores  climáticos, suas bem montadas cadeias alimentares, etc… Nem por isto, esta rede é estática. Aqui reside um dos instigantes mistérios das organizações complexas, sua capacidade de manter uma totalidade passível de ser reconhecida por nossos sentidos, aliada a uma permanente transmutação microscópica de suas partes.

A questão da sustentabilidade da vida poderia ser abordada sob diferentes ângulos e recortes que abrangem, desde seu prolongamento nas UTIs com a medicalização da morte e as questões éticas nela implicadas, até a luta por sua sobrevivência no planeta.

Assistimos cotidianamente, um sem número de agressões à dignidade da vida, de tal forma que torna-se impossível tratar este tema sem dirigir nossa atenção para um importante polo da questão: a violência intestina,[8] o mal radical [9],  uma tendência primordial para a agressividade“uma característica indestrutível da natureza humana… a agressividade.[10]

Qual o destino desta tendência primordial para a agressividade do ser humano, que segundo Freud, representa um dos mais importantes obstáculos à civilização? Não entraremos nos detalhes das considerações psicanalíticas. Diremos apenas que, impedida de se manifestar externamente, esta tendência se dirige para o interior, constituindo a instância psíquica do super-ego, que passará a tratar o ego como gostaria de tratar este inimigo exterior tornando-se tanto mais cruel quanto maiores forem as concessões e as renúncias pulsionais obtidas.  Estabelece-se então uma aliança erótica entre este ego masoquista que não cessa de ceder e o super-ego sádico, que não se cansa de cobrar. No interior desta dinâmica, a insistência pulsional resiste diante das exigências de renúncia e, se por um lado concede, por outro não desiste de buscar satisfação, o que se torna possível através da transformação de seus destinos. Estas vias substitutivas de satisfação vão constituir diferentes modalidades de gozo para as duas instâncias psíquicas e é justamente o gozo do superego tirânico que irá, em última análise, sustentar a civilização, pois não é fácil aos homens, “abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. [11]

A partir de 1920 Freud postula a pulsão de morte como princípio autônomo, o que irá permitir uma nova orientação ética em psicanálise. Ela deixa de ser um desvio da pulsão sexual que se expressaria através do sadismo, como uma forma de degradação do que originariamente era bom.Numa análise fenomênica, ou melhor, uma análise clínica das formações sociais, constata que o ser humano é regido antes por uma moralidade do que por uma ética. Freud é cuidadoso ao dizer que, a princípio, os impulsos não são nem bons nem maus, mas apenas impulsos que buscam satisfação de necessidades[12]. Este julgamento é feito a posteriori, por uma ação estranha, que decide o que deve ser chamado de bom ou mau.[13] É o desamparo, no final das contas, que vai condicionar o submetimento ao outro, pela ameaça de perda amorosa.“De início, portanto, mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados .[14]

Em 1932, Einstein e Freud trocaram correspondência indagando-se sobre o Porque da Guerra. Freud então retoma sua teoria das pulsões e reafirma que “Muito raramente uma ação é obra de um impulso instintual único (que deve estar composto de Eros e destrutividade)” e acrescenta:“Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e mal. Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos[15]

Considera ele que não há maneira possível de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem “ Na realidade, não existe esta erradicação do mal[16] e nem considera que isto seria desejável. Pode-se, contudo “ tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.”[17] Freud desenvolve a idéia de uma suscetibilidade à cultura , uma espécie de heranca filogenética para domesticar os instintos. “ Os que nascem hoje trazem consigo, como organizaçào herdada, certo grau de tendência(disposição) para a transformação dos instintos egoístas em sociais…[18] Freud revela aqui, uma perspectiva evolucionista semelhante à kant, em seu texto sobre uma visão de mundo cosmopolita “ cada geração prepara o caminho para outra…)

Em Considerações para tempos de Guerra e Morte, é abordada a questão da hipocrisia na civilização, que nos força a viver além de nossas possibilidades no que se refere ao sacrifício pulsional. Assim, ao comportar-se de acordo com os preceitos da civilização, o indivíduo poderia ser descrito como um hipócrita, tenha ele consciência disto ou não.

É inegável que nossa civilização contemporânea favorece, num grau extraordinário, a produção desta forma de hipocrisia. Poder-se-ia dizer que ela está alicerçada nesta hipocrisia, e que teria de se submeter a modificações de grande alcance, caso as pessoas se comprometessem a viver em conformidade com a verdade psicológica. Assim, existem muito mais hipócritas culturais do que homens verdadeiramente civilizados  [19]

É inquietante esta questão do sacrifício e suas consequências para a vida social. Na perspectiva de Girard, a relação entre sacrifício e violência é sempre dissimulada. Sua hipótese suprime a diferença moral entre presença ou ausência de culpa; não há nada a ser expiado. Se os povos primitivos parecem se afastar da idéia de culpabilização, eles o fazem com a intenção de evitar a vingança.“A sociedade procura desviar para uma vítima relativamente indiferente, uma vítima sacrificável, uma violência que talvez golpeasse seus próprios membros.”[20] Como Freud, Girard acha impossível erradicar a violência e compreende o sacrifício como uma forma de ludibriá-la, oferecendo-lhe algo para devorar. O sacrifício existe como necessidade social para apaziguar a violência intestina e impedir a explosão dos conflitos.

 Nesta obra, o autor  se atém sobre interessantes pontos que podemos utilizar para refletir sobre a contemporaneidade, como o que refere à cuidadosa escolha da vítima expiatória. A posição da vítima deve ser de solidão absoluta. Os critérios que presidem à sua escolha devem assegurar-se de que ninguém desposará sua causa, evitando-se assim que se reatualize o ciclo da vingança interminável.“ Muito raramente, um crime punido pela vingança é visto como o primeiro: ele é considerado como a vingança de um crime mais original”[21].

A análise de Girard é voltada para as sociedades primevas, mas o autor não deixa de se interrogar sobre os destinos do sacrifício na sociedade moderna, chamando a atenção para o fato de que a organização social do sistema judiciário diminui a necessidade do sacrifício, por ser talvez até agora, a instituição mais eficaz para por fim à vingança infinita. Os meios religiosos de combate à violência são considerados como formas de prevenção enquanto o sistema judiciário é encarado como processo curativo deslocando a violência e trasmutando suas formas. Apesar de seus requintes, ainda exige, como a operação sacrificial, um certo desconhecimento do papel da violência. Ao contrário, porém, do que sucede na estratégia do sacrifício, ancora-se na idéia de culpabilidade e conforma-se estritamente ao princípio de vingança, limitando seus alcances e utilizando-a como uma ferramenta controlada, uma técnica de cura que atua secundariamente como prevenção, legitimando e suatentando o conceito de justiça. Atua como forma de violência purificadora, punindo o culpado e colocando uma palavra final ao ciclo de vingança.

Em relação à violência dos atentados do dia 11, o argumento utilizado é de órdem político-religioso. Girard já havia dito da impossibilidade de separarmos a violência e o sagrado. Em entrevista à GloboNews, no dia 01/10/ 2001, Antonio Negri[22], refere-se aos atentados como um novo terrorismo difícil de ser combatido, especialmente vindo através de uma religião que ataca através do martírio, do risco de vida, a própria idéia de soberania. E acrescenta: a soberania moderna se alicerça sobre a idéia de que se pode decidir sobre a vida das pessoas. Aqui as pessoas decidem elas próprias morrerem. Ultrapassam assim, o limite mais extremos da soberania, que é seu poder de matar. E conclui: quando as pessoas não se importam de morrer, não é mais possível comandá-las.

Este último argumento de Negri, que sugere uma aproximação entre abraçar a morte e afirmar sua liberdade, é o mesmo utilizado por Lacan, ao postular sua Ética da psicanálise sustentada na figura se Antígona, filha de Édipo, que, contrariando as leis da cidade, decide enterrar o irmão, num gesto que lhe custará a vida. Lacan encara este gesto como uma assunção trágica da liberdade. Juntamente com Patrick Guyomard[23], questionamos esta liberdade de Antígona, uma vez que a maldição de Édipo estendia-se a todos os membros da linhagem, seu destino de morte estava traçado desde sempre.

Podemos supor que os homens bombas são livres para escolher morrer? Ou podemos vê-los dentro de um sistema de escolha de vítimas sacrificiais? De que lado identificar a vítima? Sabe-se que durante o regime nazista, muitas pessoas que participaram do esquema de extermínio de judeus não poderiam ser consideradas gozando do pleno exercício de sua liberdade, mas como assinala Contardo Calligaris[24], funcionavam como peças na engrenagem de um laço social fundado na perversão. A assunção da liberdade, implica poder conviver com a incerteza e com a angústia de não saber de seu desejo. É neste ponto de fragilidade que o tirano se apresenta como aquele que sabe e instaura um princípio de certeza inquestionável.

Freud trabalhou, em Tótem e Tabu[25], com a idéia de um crime inaugural da cultura, o assassinato do pai da orda pelos filhos. A partir deste ato de ataque à diferença, constróem o laço social,  motivados pelo medo da disceminação desta violência impura, que poderia atingir qualquer membro da comunidade. Movidos também pela culpa oriunda de um sentimento ambivalente – amor e ódio – em relação ao pai morto, erigem o lugar do tótem e instiuem o tabu do incesto, como forma de prevenção. “A concepção que assimila a violência à perda das diferenças deve conduzir ao parricídio e ao incesto como o último termo de sua trajetória. Nenhuma possibilidade de diferença subsiste, nenhum domínio da vida está a salvo contra a violência.”[26]

Interessante notarmos que, a violência pode ser, ao mesmo tempo produtora de indiferenciação, seja pelo assassinato do pai, transformando todos em iguais, seja pela globalização que ataca as diferenças culturais submetendo-as à lógica de um modelo econômico dominante e de um pensamento único. Por um outro lado, a violência pode ser, ela mesma, produtora de diferença. Como vimos anteriormente, as pulsões de vida e morte encontram-se de tal forma amalgamadas que torna-se difícil por vezes identificar suas ações isoladamente. De qualquer forma é importante ter em mente que, a pulsão de vida, em seu poder de aglutinação, apresenta também um elevado potencial de indiferenciação requerendo uma providencial ação do efeito disruptivo da pulsão de morte para introduzir o gérmem da diferenciação. Esta leitura pode ser útil na compreensão de grupos familiares bem como da comunidade mundial.

Do ponto de vista das vítimas do atentado, de seus familiares, amigos e de todos os cidadãos do planeta que solidariamente prantearam as perdas humanas e materiais, o ocorrido foi uma tragédia, que deixou exposta a até então impensável vulnerabilidade dos EUA, idealizado paraíso de segurança, apesar das matanças levadas a cabo em suas própias escolas por jóvens púberes, para horror de toda a sociedade americana e mundial.

O ato violento e irracional que brota das próprias entranhas e que coloca em questão os próprios modelos internos de organização social comporta, em si mesmo, a produção de um estranhamento, por trazer à luz alguma coisa da órdem do recalcado, daquilo que ressurge como estranhamente familiar. A violência estrangeira infiltrada no território nacional, por sua vez, caracteriza-se pela produção de desamparo frente ao Outro.

Resumindo, a violência que brota de dentro e que vem à luz, tem um poder de estilhaçamento, fazendo emergir entre as rachaduras, o retorno do recalcado, produzindo portanto um desconhecimento temporário de si mesmo como identidade nacional. De outro lado, a violência estrangeira unifica a nação em torno de um inimigo comum, produz o enrigecimento dos tecidos sociais e a emergência de um nacionalismo, visando o fortalecimento  da nação diante do sentimento de desamparo.

Os focos de violência podem aparecer encapsulados, como a peçonha no interior do organismo que a produz. Neste caso, o alvo do veneno situa-se fora, mas pode acontecer, como em algumas espécies, que o próprio organismo seja vítima do veneno que engendrou.

Mais do que a vulnerabilidade americana, ou do bloco econômico dominante, o atentado deixou exposta a vulnerabilidade da condição humana. Acionou todos os fantasmas individuais ligados ao inexorável da pré-maturação humana, nossa dependência em relação aos objetos amorosos e nossa atitude frente a morte.

Do ponto de vista planetário, deslocando o olhar das tragédias particulares para o âmbito do trágico, o atentado foi um acontecimento, um ato produtor de instabilidade e de turbulência, uma feroz manifestação da pulsão de morte no apogeu de sua potência disruptiva. Ouviu-se dizer com justa razão: o mundo nunca mais será o mesmo. É este, sem dúvida, o efeito de um acontecimento. Dele se diz que produz um desvio na orientação do real. O acontecimento é produtor do novo. Abre, como nos diz Prigogine, bifurcações e estas bifurcações vão instaurar a flecha do tempo pois, uma vez escolhido um caminho inaugura-se uma narrativa histórica irreversível. Daí depreende-se a responsabilidade inerente à escolha.

Ao escolhermos um caminho dentre as bifurcações abertas a partir da turbulência produzida pelo atentado, estamos escrevendo uma história sem retorno. O mundo inteiro acompanha passo a passo os movimentos do governo americano. Não faltam moções de apoio de outros governos, mas com o passar dos dias, novos elementos ganham destaque e começam a se impor. Lembremos que emergências e imposições são características intrínsecas à idéia de sistemas e organizações complexas.

Ganham foco, o sofrido e mutilado povo afegão e todos os muçulmanos que sofrem discriminação por serem identificados com os terroristas. As vítimas estão agora em toda parte, não mais unicamente sob os escombros do World Trade Center. Mulheres e crianças afegãs envolvem seus corpos desnutridos em trajes de cores exuberantes. São vistas na TV e nos jornais de todo o mundo, nesta inquietante mistura de cores vivas e olhares sombrios. Nova York também já não é mais somente o brilho dos letreiros da Brodway. É também uma cidade destruída, o coração da mais rica das nações, ferido de morte, lutando para recuperar seu amor próprio machucado e reinstalar sua alegria de viver. Há uma redistribuição da miséria humana e uma empatia na dor, por aqueles que sofrem. Todos sofremos, mas frequentemente nos esquecemos disto, não queremos olhar para o lado e ver a miséria alheia e quando olhamos, não deixamos de nos sentir aliviados por supormos, ingenuamente, que a miséria é apenas do outro.

Apelos de paz começam a surgir de toda parte e um encaminhamento mais racional passa a ser exigido por todos os povos, de um combate restrito severo e eficaz à rede internacional do terrorismo. Mas o povo americano, unificado em seu desamparo frente a violência reconhecida por eles como exterior e conduzido pelas mãos de um presidente que reifica o mal, identifica o inimigo e parte para uma bizarra cruzada do Bem contra o Mal, acreditando haver encontrado, assim, seu novo ponto de equilíbrio.

Mas esta crença não se sustenta: no fórum internacional de Nova York, realizado em fevereiro de 2002, ouvem-se vozes inéditas denunciando a impossibilidade de seguir tentando conciliar o enriquecimento irrefreado dos paízes ricos de um lado, o empobrecimento da maioria da população mundial de outro e a estabilidade mundial. O enriquecimento não foi capaz de garantir a segurança nacional e de seus cidadãos e não pode deter a revolta e o ódio acumulados naqueles que estão excluídos do paraíso.

Houderlin, o poeta trágico, nos diz que no bojo da maldição está a salvação e Edgard Morin em seu Evangelho da Perdição, nos convoca à uma utopia realista, capaz de religar os irmãos, não para sermos salvos, mas porque estamos perdidos. Lembra, contudo, que não podemos estar certos, em nenhum momento, de caminharmos para o melhor ou para o pior.

Os atentados do dia 11, colocam novamente em xeque, os destinos possíveis para a humanidade. Para onde caminhamos? Morin conclui seu Terra- Pátria dizendo que estamos às vésperas não da luta final, mas da luta inicial. Os atentados do dia 11, poderiam ser vistos como marco desta luta inicial?

Morin nos fala de uma Terra Pátria e há neste termo um cunho marcadamente ecológico, no sentido amplo do termo. Porém, muitos autores de diferentes vertentes do pensamento, visando a paz, advogam um certo tipo de governo mundial, um Estado dos povos ( civitas gentium) que por fim viria a compreender todos os povos da Terra[27] , que pudesse ser fundado sobre o direito das gentes.

Kant, como Freud, também acredita que o homem seja habitado por um princípio mau que não pode ser negado. Porém, também acredita na transformação deste princípio por meio de uma disposição originária moral ainda maior, embora adormecida; esta transformação deve ser esperada de todos, para a plena constituição do direito. Do contrário, a palavra “direito” só poderia ser usada ironicamente, como aquele príncipe gaulês definia: “ o direito é a vantagem que a natureza deu ao mais forte sobre o mais fraco, de que este deve obedecer a ele”.[28]

Kant não se refere à um tratado de paz que teria como finalidade por fim à uma única guerra, mas à uma liga de paz, orientada no sentido de por fim à todas as guerras para todo o sempre. Sabemos, com Negri, que o conceito de Estado Nação está em crise, mas é curioso quando nos detemos sobre um texto do séc XVIII e lá encontramos algumas idéias orientadas no sentido da Paz Mundial, bastante sintonizadas com reflexões de pensadores contemporâneos acerca da mesma finalidade.

 Em seu terceiro artigo para a Paz perpétua, Kant aponta o direito cosmopolita da hospitalidade universal. Assinala que não se trata de filantropia, mas de direito e hospitalidade, “ direito da posse comunitária da superfície da Terra, sobre a qual, enquanto esférica, não podem dispensar ao infinito, mas têm finalmente de tolerar-se uns aos outros.”[29] Considerando-se as dificuldades de transporte e comunicação no séc. XVIII,  é surpeendente que já se pensasse em direito da superfície e direito da hospitalidade. Em sua entrevista à Globonews, Negri, aponta quatro princípios para a construção da paz mundial: o primeiro deles, “ dar cidadania universal a todos aqueles que desejem se mover de um continente a outro, mudarem-se. Reconhecer a mobilidade universal como Direito.”

Na correspondência de 1932, Einstein e Freud também advogavam a necessidade de um governo mundial E Einstein diria à Freud: [30]a busca da segurança nacional envolve a renúncia incondicional por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania. E é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.” Em seus Escritos da Maturidade, Einstein insiste na necessidade de uma“ autoridade supranacional suficiente e confiável[31], da criação de um “governo mundial [32] e de uma “modificação do conceito tradicional de soberania nacional.”[33]

Com um olhar contemporâneo, Negri alerta para o fato de que, para globalizar a paz, não se pode seguir as recomendações feitas pelos juristas ligados às Nações Unidas, segundo as quais a paz poderia ser organizada por uma sociedade civil mundial       ( exatamente como pensavam Freud e Einstein), pois esta sociedade seria fundamentalmente constituída por representantes dos interesses econômicos que se estendem pelo mundo. Diga-se de passagem, Einstein sugeria que os delegados da ONU, deveriam ser eleitos pelo voto popular, no interior de um sufrágio internacional

Em respostas às questões de Einstein, Freud fala do ponto de vista de suas teorias pulsionais; reconhecendo a existência de uma pulsão de destruição, acrescenta que “ as guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses.” …Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra possa ser um meio nada inadequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz perene, pois está em condições de criar as grandes unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras.”[34]

 Tomando este aspecto paradoxal a que se refere Freud, retomemos nossa pergunta: os atentados do dia 11, colocando em xeque os destinos do planeta, poderiam, paradoxalmente,  produzir e aglutinar forças e movimentos internacionais que possam nos orientar em direção à paz?

Na entrevista supra citada, Negri aponta um outro vetor importante para a paz: oferecer a todos a possibilidade de sobrevivência. Um salário, uma renda universal da cidadania pelo simples direito de sobreviver. Esta necessidade ficou bastante em evidência nas imagens que passaram a revelar, insistentemente, após o atentado, as miseráveis condições de vida a que estavam submetidas o povo afegão.

O abalo sísmico produzido em todo o mundo, pelo impacto sobre as torres da Walt Street, chamou à responsabilidade todos os cidadãos da comunidade planetária, especialmente, àqueles que poderiam ter algum poder decisório. Pierre Bourdieu[35], em seu Contrafogos 2, cujo título nos evoca os filmes de ação Holliwoodianos, interroga os intelectuais, entendendo por isto, artistas, filósofos e cientistas, quanto ao papel que poderiam desempenhar, contribuindo para uma nova maneira de fazer política. Invoca-os em sua responsabilidade perante uma luta social, na forma de um conhecimento engajado, contra as formas absolutamente novas assumidas pela dominação. Questiona a reclusão acadêmica e apela para necessidade de conquistar-se uma autonomia para os pesquisadores.

Einstein e Freud fazem a mesma exortação aos intelectuais. Não entraremos nos detalhes de suas análises. Nossa intenção, ao invocarmos Kant, Freud e Einstein, consiste em compartilhar uma certa perplexidade diante do dejá-vu que nos produz estas leituras e da indagação que insiste em se colocar: se há séculos se indicam estes caminhos, por pensadores de diversas vertentes, por que não se opera uma mudança substancial na descentralização dos poderes e de uma nova forma de se fazer política?

Negri enfatiza o fato de que a produção agora é a produção intelectual, sendo o cérebro a ferramenta com a qual construímos a riqueza, o que aumenta a responsabilidade dos intelectuais nesta reforma ou revolução. Concluiremos relembrando que em sua análise acerca do papel dos intelectuais na promoção e na sustentação da vida no planeta, Negri coloca a inteligência e o amor como operadores centrais na efetivação dessa necessária revolução. O Império só pode ser modificado de dentro, a partir de novos laboratórios das novas classes intelectuais… por aqueles que produzem idéias com seus cérebros, ligados a seus computadores, produzindo valores e construindo a cooperação. Já não há necessidade de patrões para reunir os operários no espaço delimitado de uma fábrica e fazê-los cooperar. A cooperação se dá de forma espontânea, movida pelo desejo e caracteriza-se pela desterritorialização ao contrário do confinamento.

Na mesma linha de Morin, em Amor Poesia e Sabedoria, Negri  acrescenta: não se deve mais desvincular trabalho e cultura, trabalho e alegria. Ligar, desligar e religar de forma sempre transformada, continua sendo um movimento vital na construção de uma cultura planetária que favoreça, em todos os níveis, a sustentabilidade da vida.

Encerro por aqui essas reflexões, ligadas, desligadas e religadas, agradecendo à todos pela generosidade da escuta.

 

 

 

 


[1] Palestra proferida no COMPLEXUS, PUCSP, em  2002.

[2] Morin, Edgar. O Homem e a Morte , Rio de Janeiro, ed. Imago, 1997, p.9

[3] Schrödinger, Erwin. O que é a vida?

[4] Reeves, Hubert A Hora do Deslumbramento. O Universo tem um Sentido? Ed. Martins fontes, S. Paulo, 1988, p.70

[5] Id. Ibid

[6] Freud, S. Reflexões para Tempo de Guerra e Morte (1915) Imago Ed. P.339

[7] Id. Ibid. p.329

[8] Girard, R. A Violência e o Sagrado

[9] Nietzche …

[10] Freud, S. Mal Estar na Civilização ( 1930)

[11] Id ibid p.136

[12] Freud, S. ( 1915)  Reflexões para tempos de Guerra e Morte,Imago Imago ed. vol.14, p.317

[13] Freud, S. (1930) Mal Estar na Civilização Edição Standard, 21 p. 147

[14] Id. ibid. p. 148

[15] Freud, S. Por que a Guerra (1933)Imago Ed., vol.22 p.253/ 252

[16] Freud, S. ( 1915)  Reflexões para tempos de Guerra e Morte,Imago Imago ed. vol.14, p.317

[17] Id. Ibid. p.255

[18] Id. Ibid. p.319

[19] Freud, S. ( 1915)  Reflexões para tempos de Guerra e Morte, Imago Ed, 14, p.321

[20] id. ibid. p.14

[21] Id. Ibid. p.27

[22] Ver também, Hardt, M e A. Nigri, O Império ,Record , Rio de Janeiro/S. Paulo, 2001

[23] Guyomard Patrick O Gozo do Trágico Jorge Zahar Ed.Rio de Janeiro, 1992

[24] Calligaris, Contardo A Perversão dos laços Sociais

[25] Freud, S. Tótem e Tabu Imago Ed. vol

[26] Id. Ibid. p.99

[27] Kant, E. À Paz Perpétua  ( 1795) Série Filosofia Política LePM ed.1989 p.42

[28] Id. Ibid. p.40

[29] Ibid. p. 43

[30] Freud, S. Por que a Guerra (1933)Imago Ed., vol.22 p. 242

[31] Einstein, A. Escritos da Maturidade – Carta aberta à Assembéia Geral das Nações Unidas—Ed. Nova Fronteira,Rio de Janeiro,1994, p.165

[32] Id.Ibid. p.168

[33] Ibid. p.166

[34] Id.ibid p.250

[35] Bourdieu, Pierre Contrafogos2 Jorge Zahar ed.Rio de janeiro, 2001