Fermin Roland Schramm, PhD “A Interpretação Complexa da Lei de Hume e da Falácia Naturalista”.

A INTERPRETAÇÃO COMPLEXA DA LEI DE HUME E DA FALÁCIA NATURALISTA.

1º Simpósio de Ética em Saúde, 21-22 de maio de 1998

Fermin Roland Schramm, PhD

 

 

Introdução

O pensamento complexo está baseado ou – se quisermos evitar o imaginário fundacionista e/ou hierárquico amplamente criticado e até desqualificado por boa parte da filosofia da ciência póspopperiana do século XX – vinculado ao método de saber distinguir sem separar e juntar sem confundir (Morin), ou seja, de saber fazer, por um lado, as distinções necessárias entre âmbitos de pertinência diferentes (que definem classes de objetos e tipos lógicos diferentes) e, por outro lado, de detectar os vínculos entre eles, considerados necessários e significativos, para dar conta das práticas simbólicas humanas. Podemos sintetizar tal método pela dupla conjunção e/ou, que deve ser entendida seja como uma coisa e a outra seja como uma coisa ou a outra.

Isso traz evidentemente uma série de problemas lógicos para aqueles acostumados a pensar nos termos da lógica clássica, que devem respeitar os princípios de não contradição e do terceiro excluído, e que é justamente o que o método complexo pretende superar por considerar que a realidade e as práticas humanas, inclusive as cognitivas, não podem ser reduzidas a este tipo de lógica.

Do ponto de vista fenomenológico, este tipo de procedimento não é nada mais que um outro estilo de pensar o sujeito no Mundo, atribuindo sentido a seres e coisas e sendo significado por eles, ou seja, uma maneira de reinventar um lugar para o sujeito, entendido não mais como mero ser-jogado-no-mundo, entendido como algo externo e imposto, mas como ator deste mundo, agindo e pensando-se como ser e não como simples objeto. Em outros termos, a fórmula da conjunção complexa e/ou, indicada pelo verbo dasein aplicado a um observador, significa, no meu entender, e antes de tudo, um estar junto com as coisas (mitsein) e com os outros seres (miteinardersein); uma maneira de o observador pensar o Mundo dos entes e dos seres, vivenciando coisas e seres, e vivenciando-se a si mesmo como um desses seres ou coisas, numa espécie de treinamento para poder aproximar-se (talvez ilusoriamente) do imaginário do outro que nos determina e objetiva.

Sendo assim – costuma-se dizer – o método da complexidade preocupa-se tanto com o todo como com as partes, sem confundir seus âmbitos de pertinência irredutíveis; com os objetos e/ou os sujeitos e seus contextos; com a objetividade e a subjetividade; com os aspectos quantitativos e qualitativos dos saberes; com a teoria e a prática e, no caso da atividade cognitiva científica, com fatos e valores.

A seguir, pretendo mostrar como o método da complexidade pode ser aplicado para pensar a relação entre “fatos” e “valores”. Este problema tem ocupado a mente dos pensadores que se ocupam das relações entre ciência e ética desde que David Hume, em seu Tratado da Natureza Humana (III, I, 27), chamou a atenção sobre aquela que considerava um sofisma, consistente em deduzir “o que deve ser” daquilo que “é”, e que  durante pelo menos os últimos dois séculos e meio e constitui, a meu ver, uma das questões teóricas mais complicadas tanto da epistemologia e da lógica como da ética aplicada e da bioética.

 

Características comuns entre pensamento complexo e bioética

 

Começarei com duas citações: uma de Edgar Morin, bastante conhecido pelo público informado brasileiro; a outra de Van Rennselaer Potter, o reconhecido criador do neologismo bioética.

“[O pensamento complexo] é o pensamento capaz de juntar, contextualizar, globalizar, mas também de reconhecer a singularidade, o individual, o concreto. (…) O pensamento complexo não se reduz nem à ciência nem à filosofia, mas permite a comunicação entre elas. (…) O pensamento que junta pode esclarecer uma ética da solidariedade” (Morin)[1]

 

 

“[A bioética é] o conhecimento de como usar o conhecimento para a sobrevivência humana e para melhorar a condição humana. (…) A bioética é uma nova ética científica que combina a humildade, a responsabilidade e a competência, que é interdisciplinar e intercultural, e que intensifica o sentido da humanidade.” (Potter)[2]

 

 

O que estas citações têm em comum? Qual é a preocupação comum dos dois autores?

Embora dito em termos diferentes, acredito não estar muito errado ao dizer que tanto o sociólogo Morin quanto o cancerologista Potter se preocupam em primeiro lugar com o sentido que deveria tomar o conhecimento para o bem-estar de cada humano e da humanidade como um todo. Isso no que diz respeito aos fins do conhecimento.

Em segundo lugar, do ponto de vista pragmático – que diz respeito aos meios considerados adequados para atingir tais fins – ambos os autores propõem o mesmo tipo de caminho (ou metodos): o caminho da interdisciplinaridade; da contextualização; da preocupação com os nexos entre seres, coisas e enfoques diferentes, por um lado, e o caminho da solidariedade, por outro.

Em outros termos, os fatos que o conhecimento produz parecem estar numa solidariedade profunda com os valores que tais fatos implicam, e é isso que tanto Morin quanto Potter parecem sugerir.

Mas se esta interpretação for correta, os dois autores estariam infringindo a assim chamada lei de Hume, formulada no começo do século XX (1903) pelo filósofo analítico George Edward Moore e que interdita derivar o que deve ser daquilo que (supostamente) é, caso contrário cometer-se-ia um paralogismo chamado falácia naturalista.[3]

No entanto, quando atualmente se pensa nos reais e possíveis efeitos do conhecimento (de fato cada vez mais um saber-fazer) sobre seres e coisas, em particular, sobre a qualidade de vida de indivíduos e populações humanas consideradas em seus ambientes, podem surgir sérias dúvidas sobre a validade da lei de Hume.

 

 

Crítica da lei de Hume

 

A lei de Hume e as críticas que lhe foram feitas pela lógica moderna e pelo construtivismo mereceriam, evidentemente, uma análise mais aprofundada daquela que será apresentada a seguir. No entanto, não é tanto a discussão epistemológica sobre a pertinência, ou não, do naturalismo ético que nos interessa aqui, pois nossa preocupação consiste e apresentar uma versão complexa da mesma, capaz de dar conta da lei e de evitar as conseqüências contraintuitivas de sua aplicação rígida.

O que se pode inicialmente dizer é que a lei de Hume não apresenta problemas numa concepção pré-kantiana (ou pré-construtivista) do conhecimento, segundo a qual quando conhecemos estaríamos “espelhando” a realidade como ela é (para utilizar a metáfora querida do filósofo neopragmatista norteamericano Richard Rorty, também bastante conhecido pelo público informado brasileiro) ou, para utilizar os próprios termos de Kant, estaríamos atingindo o númeno ou a coisa em si, a coisa como ela (supostamente) é. Já numa concepção kantiana e a fortiori pós-kantiana, o conhecimento não atinge o númeno ou, como diria Lacan, o real, mas sim o fenômeno, isto é, a realidade “filtrada” pela mente, a qual sempre parte de um ponto de vista e de um contexto discursivo-existencial, e que o pai da lingüística moderna, Ferdinand de Saussure, sintetizou pela fórmula é o ponto de vista que cria o objeto, entendendo este ponto de vista como uma construção simbólica, produto da linguagem e portanto um construto necessariamente social. Esta concepção do conhecimento é o que funda a epistemologia construtivista que, a meu ver, é a condição do surgimento do pensamento complexo.

O construtivismo se dá basicamente em duas etapas. Primeiro, através da negação kantiana que afirma que não conhecemos númenos, mas tão somente fenômenos. Segundo, através da afirmação saussuriana e de toda a filosofia da linguagem do século XX, segundo a qual nosso conhecimento tem alguma forma de objetividade, só que esta não consistiria em conhecer o que (supostamente) é sem saber previamente o que se quer saber daquilo que (supostamente) é, ou seja, sem que o ato de conhecer esteja vinculado a alguma função prática (mesmo que seja o mero deleite intelectual). O biólogo e epistemólogo chileno Humberto Maturana sintetizou este fato afirmando que tudo o que é dito é dito por um observador para alguém.

O que queria dizer Maturana com isso?

Essencialmente duas coisas. A primeira é que o processo do conhecimento depende de um ponto de vista que é produzido por um observador. Esta afirmação é mutatis mutandis a mesma de Saussure. Mas Maturana introduz algo a mais quando afirma que o que é dito (isto é, conhecido) é dito para alguém. Isso quer dizer que as afirmações que pretendem ter um valor cognitivo só podem tê-lo dentro de um domínio consensual de linguagem, que permite a alguns fazer afirmações e a outros verificar, aceitando ou refutando tais afirmações num domínio de troca simbólica.

Mas isso não é tudo, pois quem fala para alguém age ou, melhor dito, o conhecimento implica uma prática, um autor que é simultaneamente ator no contexto do grande teatro do mundo. Ou seja, pensar e agir são inseparáveis, embora não confundíveis. Esta foi, aliás, a grande lição de Jean Piaget, para quem a interação entre sujeito e objeto é a fonte do pensamento, e isso desde a primeira infância, pois, como ele afirmara, a criança constrói o mundo ao construir-se a si mesma. Recentemente, alguns ex-alunos de Piaget foram mais longe, identificando totalmente pensar e agir, o que a meu ver é bastante problemático. Este foi o caso de Pierre Mounoud, ao estudar o pensamento que está no agir e que faz com que se gerem novos programas de ação. Em outros termos – nos termos de Mounoud – , a ação não seria mero pré-requisito do pensamento mas a sua tradução, o que permitiria subverter as teorias clássicas tanto do desenvolvimento como do conhecimento, visto que Mounoud afirma de fato a imanência do pensamento à ação. Assim sendo, o racionalismo de Mounoud permitiria corrigir o cogito ergo sum cartesiano pelo ago ergo cogito pragmático. Mais do que isso, permitiria juntar racionalismo e pragmatismo numa única fórmula: ago ergo cogito, ergo sum, que a meu ver sintetiza a concepção complexa da relação entre pensamento e ação.

A consequência disso (que aqui resumi muito) é que o mesmo sujeito que conhece (o assim chamado sujeito epistêmico) pode ser o sujeito que age e que, agir sobre o outro, é também sujeito ético.

Mas, aqui, é preciso fazer uma distinção ulterior, sem a qual não é possível repensar em termos complexos a lei de Hume. Trata-se da distinção entre a categoria de ação e a categoria de agir, ou comportamento. Esta distinção é sociológica e afirma em substância que a ação pode ser separada de seu(s) ator(es), ao passo que o agir (ou comportamento) implica sempre numa dimensão relacional, isto é, implica sempre ação inter-individual ou social. Em outros termos, existe ação social quando, na relação com os outros (que podem ser pessoas stricto sensu ou outros seres como animais, gerações futuras ou o próprio meio ambiente)[4] quem age o faz dando um sentido intencional àquilo que faz ou diz, isto é, quando existe escolha, decisão e escopo, assim como previsão das prováveis consequências para o(s) outro(s), resultantes de tais escolhas.

Uma primeira formulação, ainda incompleta, dessa distinção entre ação e comportamento deve-se a Max Weber, mas Weber tinha ainda uma concepção demasiadamente subjetivista do ator, visto que esqueceu as condições objetivas (implícitas ou explícitas)[5] da interação, o que provavelmente lhe impediu de tirar todas as consequências de sua ética da responsabilidade, o que começou a ser feito a partir da obra de Hans Jonas e de sua teoria da responsabilidade ôntica.

Portanto, é no nível do sujeito em situação, que interage com seu meio, povoado de entes e seres (quaisquer estes sejam), que a junção entre fatos e valores pode se dar. Com efeito, o sujeito epistêmico (que conhece) é o sujeito pragmático (que age), que é o sujeito moral (que interage com o outro).

Mas isso não é suficiente para derrubar a lei de Hume, visto que o fato de tratar-se do mesmo sujeito não impede que se possam fazer distinções entre a dimensão epistêmica, a dimensão pragmática e a dimensão moral de um mesmo sujeito, o que de fato deve ser feito se aplicarmos o método da complexidade que, como sabemos deve saber também distinguir (embora não separar). Afinal, se é correto afirmar – como fez Saussure – que é o ponto de vista que cria o objeto, um ponto de vista não implica necessariamente outro nem a confusão entre pontos de vista distintos do ponto de vista espaço-temporal.

Entretanto, pode-se supor também que exista um ponto de vista – que chamaremos aqui de complexo – capaz de juntar os pontos de vista anteriores sem subsumir um ao outro. E como, isso seria possível?

A solução não é fácil pois sempre permanece a suspeita de que o ponto de vista complexo queira, de fato, ser uma espécie de meta-ponto de vista, com pretensões holísticas e globalizantes, o que seria contrário ao espírito de incerteza e incompletude que anima o pensamento complexo. Em outros termos, perder-se-ia as singularidades que, como vimos na citação de Morin, fazem parte do pensamento complexo. Ademais, o eventual meta-ponto de vista da complexidade deveria fazer as contas com a antinomia e a teoria dos tipos lógicos de Russell, segundo a qual tal meta-ponto de vista não faria parte da mesma classe dos outros pontos de vista.

Devido a essas dificuldades, uma solução provisória consiste em respeitar prima facie a distinção entre universo dos fatos e universo dos valores, afirmando, por exemplo, a independência antropológica dos valores morais dos fatos científicos, logo a distinção entre sujeito epistémico e sujeito moral. Isso vale, mutatis mutandis, quando se pense em fatos e valores morais, ou seja, quando consideramos fatos morais ações propriamente ditas, que serão estudadas como fatos, por exemplo, pela sociologia.

No entanto, esta distinção é não só epistemológica. Ela é também estratégica, pois permite enfrentar o niilismo heideggeriano – hoje tão na moda seja entre “apocalípticos” seja entre “integrados” (como dizia Umberto Eco num famoso livro do começo dos anos Setenta) – segundo o qual o humano ter-se-ia tornado refém do Gestell (“arrazoamento”) da tecnociência, a qual teria uma lógica própria (que Heidegger chama de “essência” da técnica) e independente das decisões humanas. Isso é, a meu ver, uma conseqüência lógica da indistinção entre universo dos fatos e universo dos valores, ou seja o resultado de uma falácia naturalista. E pouco importa se a técnica é de fato algo artificial, ou “não natural”, pois Heidegger parece submete-la a um mesmo tipo de finalismo intrínseco, supostamente típico dos processos naturais (pelo menos numa visão pré-darwiniana).

Por outro lado, o fato de manter distintos fatos e valores não impede, também prima facie, que nós nos preocupemos com as relações que, nós humanos, estabelecemos entre os dois universos, isto é, que nós nos preocupemos com aquilo que podemos chamar de multiversum, constituído pelas percepções que possamos ter das relações entre fatos e valores num determinado momento histórico.

 

Conclusões

 

 

 

Concluindo esta rápida reflexão sobre a interface entre ciência e ética, pode-se dizer que o pensamento complexo que, como mostrou Isabelle Stengers, não é um paradigma mas mais um desafio ou um état d’esprit, pode senão superar a lei de Hume, pelo menos torná-la válida prima facie, dentro do espírito “enfraquecido” de nossa modernidade tardia (ou pósmodernidade como preferem alguns).

Neste sentido existe uma analogia profunda – que talvez indique a emergência de uma nova sensibilidade ou um outro Zeitgeist – entre as preocupações dos pesquisadores do pensamento complexo e os pesquisadores em ética aplicada e bioética, que não trabalham mais, de preferência, com deveres e valores absolutos, mas com sua versão contextualizada e historicizada de princípios que, na melhor das hipóteses, são válidos prima facie.

É por isso provavelmente que Ilya Prigogine chamou nossa época de “era da incerteza”. Para alguns, este Zeitgeist é muito ruim e angustiante, razão pela qual gostariam que voltássemos a certezas e a valores plenos e norteadores do agir em qualquer circunstância. Para outros, entre os quais me incluo, este é o preço de nossa liberdade, conquistada a duras penas durante séculos, a qual só pode dar-se com responsabilidade, isto é, respondendo individual e – quando possível – coletivamente aos vários tipos de desafio que nosso mundo nos coloca. Uma das formas mais sublimes desta responsabilidade é a solidariedade, mas para atingi-la é preciso uma revolução antropológica que, talvez, não sejamos ainda prontos a receber.

Além disso, só existe a santidade, que não sei se é deste mundo. Aquém disso, existe a necessária proteção que as instituições (como o Estado) devem dar a seus cidadãos, para poder ser consideradas por eles moralmente legítimas.

 


[1] MORIN, E. 1997. Le besoin d’une Pensée Complexe. In: Représentation el Complexité (org. Candido Mendes). Rio de Janeiro, Ed. Educam/Unesco/ISSC, pp. 85-96, p. 95.

[2] POTTER, V. R. 1998. Bioetica puente, bioetica global y bioetica profunda, Bioetica. Cuadernos del Programa Regional de Bioetica, 7: 21-35, p. 32.

[3] MOORE, G. E. 1998. Principia Ethica. São Paulo, Ed. Ícone.

[4] Esta observação permite dar conta do debate em ética aplicada sobre os seres sencientes, o meio e as gerações futuras.

[5] Isto é, inconscientes ou conscientes.