Aida Ungier: 2° Encontro do Núcleo de Clínica do Instituto de Estudos da Complexidade Clínica: Novas Lógicas Sociais

Clínica Social: as conseqüências metapsicológicas     das novas lógicas sociais[1]

 

 

                                                                                 Aida Ungier[2]

 

 

Resumo: A partir dos relatórios da Clínica Social da SBPRJ, nos últimos 40 anos, a autora faz uma articulação entre as novas lógicas sociais e o mal-estar na contemporaneidade, com vistas a pensar os recursos oferecidos pela psicanálise frente a esses desafios.

 

Palavras Chave: Clínica Social / poder disciplinar / função paterna / modernidade líquida / transicionalidade

 

 

I – Introdução

 

O desafio da clínica contemporânea nos obriga a pensar a sociedade e suas transformações na tentativa de encontrar recursos para acolher o sofrimento daqueles que se desencaminharam no avanço das novas lógicas sociais. A luta permanente entre o já sabido sobre a dor do viver e as novas e engenhosas produções do adoecer psíquico está na base do edifício da psicanálise desde os pioneiros: Reich e Ferenczi procurando meios de relativizar a intelectualização trazida pelas primeiras descobertas; Klein buscando atender crianças cada vez menores, aproximando as produções oníricas do brincar infantil; Lacan propondo um retorno a Freud, frente ao perigo da psicologização americana na teoria e na prática psicanalítica. Portanto, engendrar soluções para novos impasses tem sido a nossa profissão de fé, certos de que nenhuma solução encontrada será a única ou a definitiva. Trata-se do voto de humildade recomendado a todo aquele que se dedica ao ofício de psicanalizar.

 

Fiel a esse propósito e tendo como instrumento de pesquisa as mudanças observadas nos últimos 40 anos, no universo da Clínica Social da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), pretendo cotejar essas mudanças com as novas produções da subjetividade, visando contemplar a complexidade da clínica atual. Gostaria de sublinhar, que encontros regulares realizados durante o último ano, com analistas filiados a diversas sociedades no Rio de Janeiro, revelaram uma experiência semelhante àquela descrita pela produção científica consultada. Na verdade, essas novas manifestações patológicas não são tão novas, assim, o ineditismo reside na gravidade e no caráter epidêmico de sua distribuição. No epidêmico a psicanálise busca o singular, o singular da criação sintomática, em uma báscula que nos remete outra vez ao universal, questionando o papel da psicanálise na sociedade contemporânea.

 

 

II – Clínica Social e o social na clínica

 

O tratamento psicanalítico foi sempre considerado um tratamento elitizado, em virtude dos altos custos dos honorários, da assiduidade da freqüência, da duração não só das sessões, como também, da própria cura. Essa peculiaridade do método não impediu que ele se expandisse e beneficiasse pacientes que, em princípio, não poderiam arcar com tais encargos. Freud, por exemplo, tratou, graciosamente, do Homem dos Lobos, quando este nobre russo perdeu sua fortuna na época da revolução. Essa prática não é incomum. Os honorários devem se adequar às possibilidades reais da dupla em cada caso, chegando até à suspensão do mesmo em situações excepcionais. Sem dúvida, as vicissitudes do enquadre promovem perturbações transferenciais e contratransferenciais que devem ser consideradas e, se admitidas, elaboradas para o sucesso da cura. Sendo assim, sem preocupação com a saúde em geral, mas voltados para o bem estar de um determinado paciente, em particular, houve sempre movimentos no sentido de tornar a psicanálise uma opção terapêutica acessível. Porém, carece distinguir essas situações particulares, da preocupação social que estende o saber desta ciência aos serviços de saúde pública e às clínicas de atendimento mantidas pelas diversas sociedades.

 

Para conhecer tais iniciativas, bem como suas vicissitudes, preciso contextualizá-las. A psicanálise penetrou na rede pública de saúde, no Rio de Janeiro, a partir da década 60, especialmente, através das Comunidades Terapêuticas, introduzidas no Hospital Pinel e no Centro Psiquiátrico Pedro II, num movimento semelhante ao que já ocorria no sul do país. Nessa mesma época desenvolveu-se, ainda, no Hospital Pinel, um trabalho inovador de psicoterapia de grupo que ganhou notoriedade, não só por sua excelência, como também, por ser um oásis de liberdade, no deserto em que se transformara a vida brasileira durante a ditadura. Afinal, “falar tudo aquilo que se pensa”, regra fundamental da psicanálise, era uma proposta absolutamente subversiva naquele período. Paralelamente, iniciou-se na rede de atendimento do INAMPS, um trabalho de psicoterapia de grupo que atendia preferencialmente pacientes neuróticos, ou psicóticos em fase de remissão e com bom prognóstico. Essa prática floresceu e se desdobrou em diversas outras unidades de atendimento: grupos de gestantes, grupos de famílias de crianças internada em CTI neonatal, etc.

 

Vivíamos o boom da psicanálise, de sorte que, ela ganhou, também, a universidade, através dos Consultórios Modelo das faculdades de psicologia, dos serviços de psiquiatria e da disciplina de psicologia médica, onde os profissionais de saúde eram estimulados a desenvolver um olhar mais abrangente com relação ao paciente, pensando o sujeito não só como um órgão doente, mas um corpo que tem nome, história, no qual o adoecer seria apenas um capítulo dessa história. As pesquisas sobre psicossomática trouxeram um novo viés para articular psicanálise e medicina, através da compreensão da dinâmica da formação de sintomas, especialmente, nas doenças autoimunes, gastrintestinais e cardiológicas.

 

 

III – As clínicas sociais

 

Finalmente a psicanálise sensu stritu foi preservada e divulgada através do atendimento regular realizado na grande maioria das sociedades através das Clínicas Sociais. Freud (1923, p. 357), no prefácio do relatório sobre a Policlínica de Berlim, parabenizou o amigo Max Eitingon, por tê-la criado e sustentado, exortando outros colegas ou sociedades a seguir seu exemplo. São palavras de Freud: “Se a psicanálise, ao lado de sua significação científica, tem valor como procedimento terapêutico, se é capaz de fornecer ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização, esse auxílio deveria ser acessível também à grande multidão, demasiado pobre para reembolsar um analista por seu laborioso trabalho. Isso parece constituir uma necessidade social particularmente em nossos tempos, quando os estratos intelectuais da população, sobremodo inclinados à neurose, estão irresistivelmente na pobreza. Institutos como a Policlínica de Berlim estão também isolados na posição de superar as dificuldades que, por outro lado, se erguem no caminho de uma instrução completa em psicanálise. Eles tornam possível a instrução de um número considerável de analistas, cuja atividade deve ser encarada como a única proteção possível contra o dano causado aos pacientes por pessoas não qualificadas, sejam elas leigos ou médicos”.

 

Essa proposta ainda vigora, todavia, observamos, graças à bibliografia consultada, uma mudança radical tanto na população que demanda quanto na que oferece tratamento, achado que merece ser problematizado. A população que procurava a clínica nas décadas de 60 e 70, abrigava um número considerável de cidadãos de classe média: estudantes universitários, profissionais liberais em início de carreira, comerciantes, bancários, pessoas  que, se por um lado, tinha acesso a um método de tratamento considerado elitista, por outro, socializava-o. Vale lembrar, ainda, que o arsenal terapêutico da psiquiatria, àquela altura, era consideravelmente reduzido e o tratamento psicoterápico veementemente recomendado, sendo natural, portanto, que os psiquiatras, àquela altura, de um modo geral, se  dirigissem aos institutos de formação em psicanálise. Aliás, engajar-se em um tratamento pessoal era demonstração de seriedade no exercício profissional.

 

Ao longo desses anos, a preocupação com a instrução dos candidatos, como demonstrou a maioria dos artigos, foi um tema recorrente. Recomendava-se, por exemplo, que um analista em formação, só deveria acompanhar casos de neurose, a fim de que se familiarizasse com a técnica clássica, para mais tarde poder modificá-la adequando-a aos casos mais graves. Até a década de 80 esta conduta atendia às necessidades do candidato à analista, porém, era insatisfatória para a população que buscava atendimento. A procura era grande e não havia número suficiente de candidatos para absorver tal demanda. Sendo a psicanálise altamente valorizada e farta a oferta de clínica particular, os candidatos se dirigiam à Clínica Social porque, somente através dela, teriam acesso ao paciente que analisariam sob supervisão oficial. Publicações dessa época criticavam, então, o abandono em que eram deixados os não escolhidos. Afinal, a sociedade era responsável pela demanda criada e deveria encontrar meios para atender a todos e, não apenas, aos que buscavam titulação.

 

O século XXI nos brindou com um cenário absolutamente diverso. A partir dos anos 90, a população que aflui à clínica empobreceu, constando principalmente de estudantes, comerciários, artesãos, secretárias, taxistas, empregadas domésticas, etc, evidenciando a significativa penetração do discurso da psicanálise em todas as camadas sociais. Além disso, os quadros patológicos se mostram progressivamente mais graves, seguindo a tônica da clínica em geral, tornando difícil encontrar o paciente ideal para um analista em formação: ora o quadro sendo muito grave, demanda um analista experiente, ora o caso é adequado, todavia, o paciente não tem condições de dispor de duas horas, quatro vezes por semana, em virtude da distância de seu domicílio ou local de trabalho, ou ainda em virtude da limitação orçamentária, apesar dos módicos honorários. É importante lembrar que a cidade cresceu, o trânsito frequentemente é caótico, tornando morosa a locomoção mesmo entre bairros vizinhos.

 

Por outro lado, mudou, também, a feição dos profissionais que se oferecem para receber tal população. Os candidatos e, agora também, muitos membros titulados, frente à diminuição de sua clientela, em virtude da oferta de outras alternativas psicoterapêuticas, bem como, do crescimento da indústria farmacêutica, procuram construir sua clínica privada através da clínica social. Penso que, essas novas alternativas terapêuticas, surgiram, como veremos adiante, no bojo das mudanças sociais que contribuíram para o declínio do valor da psicanálise em nosso meio. Ao fim e ao cabo, o que era problemático há vinte anos – encontrar profissionais que atendesse a tanta demanda, sofreu uma reviravolta – atender a necessidade, não só, de pacientes para as supervisões oficiais, mas, também, para satisfazer a demanda de clínica particular, quando a psicanálise, como método terapêutico, caiu em descrédito. Cabe a questão: a Clínica Social, acompanhando o movimento observado em todos os setores de prestação de saúde, transformou-se em uma cooperativa, a maneira dos convênios? Se este é o cenário que reflete a política de saúde na contemporaneidade, qual seria o fiel que garantiria, não só a instrução de novos analistas, bem como um tratamento de qualidade para a população, como propôs Freud? Afinal, trata-se de uma “cooperativa” singular: ela pertence a uma instituição formadora de psicanalistas. Essa questão não é simples de responder, todavia, vale pensar a respeito.

 

 

IV – O mal-estar na contemporaneidade

 

Para compreender os movimentos que redundaram nesse quadro e formular alguma proposta de reflexão sobre as vicissitudes e o porvir da psicanálise, o pensamento da complexidade se apresenta como uma ferramenta privilegiada. Segundo ele, tudo aquilo que se apresenta é fruto de uma organização momentânea que depende para sua criação e manutenção de inúmeras variáveis. Nada está pronto ou é definitivo, desde a organização celular à estrutura macroeconômica de um país. Sendo assim, para sustentar este arrazoado, recorrerei a Michel Foucault e a Zigmunt Balman, porque Foucault apontou a íntima relação entre as estruturas sociais e o poder que permeia as relações humanas e Bauman dedicou-se, nos últimos anos, a pesquisar os efeitos sociais da, assim chamada, pós-modernidade.

 

Para Foucault (1979) não existe uma teria geral do poder, nem existe nele uma essência com características universais. Trata-se de uma prática social, constituída historicamente, e em constante transformação. Examinando a história da loucura, por exemplo, ele apontou a distância considerável entre os discursos teóricos sobre a loucura e o tratamento oferecido aos loucos nas dependências dos asilos, demonstrando que a essência da loucura não teria sido revelada pela psiquiatria. Ao contrário, a psiquiatria é fruto de um processo de dominação da loucura exercido pelas instâncias sociais: a política, a família, a Igreja.

 

Logo, o que se depreende de suas afirmações é que tanto a emergência da subjetividade, quanto da estrutura social, se estabelece a partir de um agenciamento de forças, confirmando aquilo que, analogamente, se poderia extrair da teoria freudiana. Para ele as técnicas de exercício do poder visam o domínio dos corpos, para adestrá-los, de sorte que, a tecnologia de controle não existe apenas nas penitenciárias, mas também nos quartéis, hospitais, escolas e no próprio espaço doméstico. Ele elege, então, o Panopticon de Jeremy Bentham – uma construção circular com uma torre central, de onde um vigia poderia observar tudo o que se passasse no edifício em torno – como a arquimetáfora do poder a partir do século XVIII, ou seja, desde o início da modernidade.

 

Surgia o poder disciplinar, um método que permitia o controle minucioso das operações do corpo, que assegurava a sujeição constante de suas forças e lhe impunha uma relação de docilidade / utilidade que fabricou o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial / capitalista. A disciplina é um tipo de organização do espaço e do tempo, com o objetivo de alcançar o máximo de rapidez e de eficiência. A vigilância deve ser contínua, perpétua, ilimitada, presente em toda a extensão do espaço. O olhar invisível do Panopticon de Bentham, que permite tudo ver sem ser visto, domina quem é vigiado com tal violência, que este adquire de si mesmo a visão de quem o olha.

 

É interessante sublinhar que a descrição do poder disciplinar, apresentada por Foucault, está na raiz do conceito de supereu, instância psíquica proposta por Freud. Na teoria psicanalítica, o supereu representa o agente da lei, o pai internalizado a partir da resolução do complexo de Édipo, o olho que tudo vê, acompanhando o modelo de controle exercido pelo poder social no início da era moderna. Todavia, Lacan, em 1938, examinando a estrutura dos laços familiares, argumentou que estaria ocorrendo na sociedade, justamente, o declínio da função paterna, ou seja, a psicanálise traria uma ambigüidade na própria origem. Ela se sustenta sobre os conceitos de falo e função paterna, no entanto, é filha da modernidade. Historicamente, o Pai foi dado como morto desde a queda da monarquia, promovida pela Revolução Francesa; morte, esta, reafirmada por Nietzsche no aforismo: “Deus está morto”. No entanto, a obra de Freud gira em torno da Lei e da castração. Nosso mal estar seria conseqüente à necessidade de abrir mão da natureza para haver civilização. Dar conta dos excessos da civilização viria pelo método de tornar consciente o inconsciente: liberar um tanto de natureza constrangida.  A psicanálise surgiu a partir de uma atividade terapêutica, uma práxis cuja pedra de toque é o recalque. Aqueles, cuja posição frente à castração não passasse por essa vicissitude, estariam excluídos de seus benefícios. Aqui se perfilam as neuroses narcísicas, os psicóticos, os perversos, justamente aqueles que mais frequentemente, hoje, demandam a nossa atenção.

 

Poderíamos concluir, então, que a causa do declínio da função paterna ou da pulverização do poder, embora tenha se instalado no final do século XVIII, de fato, somente evidenciou suas conseqüências sociais e psíquicas, ao longo do século XX. Tal constatação nos leva a admitir, portanto, que Freud tratou do mal-estar na modernidade e, quanto a nós, carece pensa-lo na contemporaneidade.

 

Neste caso, as reflexões do sociólogo Zygmunt Bauman (2000) são preciosas e se articulam, como uma continuidade, ao pensamento de Foucault. Para ele, a modernidade compreenderia duas fases. A primeira, a fase sólida, fase do controle panóptico, que Foucault tão bem examinou, seria aquela assentada nos valores tradicionais, sobre os quais se desenvolveu a obra freudiana. Surgida com a queda da monarquia, na França, manteve a relação vertical do sujeito com o poder, promovendo o ideal burguês de renúncia ao gozo, em benefício da disciplina, que leva ao acúmulo de capital. A segunda fase, a fase leve ou líquida, surgiu com a ordem de derreter os sólidos, cunhada pelo Manifesto Comunista. Segundo essa proposta, só seria possível tratar uma sociedade estagnada, resistente à mudança, derretendo os sólidos, dissolvendo o que persistisse no tempo e fosse infenso a sua passagem, ou ao seu fluxo. No rastro desse grito de guerra contra a tradição, às crenças ou lealdades que permitiam aos “sólidos” resistir à liquefação, engendrou-se a face mais feroz do capitalismo.

 

Esse movimento pulverizou a complexa rede de relações sociais, liberando-a de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais, dissolvendo os elos que vinculavam as escolhas individuais com os projetos e ações coletivas. Se a moral burguesa, na primeira fase, convocava ao recalque do gozo em proveito das realizações culturais, na fluidez do capitalismo desenfreado, a produção incessante de bens de consumo inverteu a relação entre oferta e procura: primeiro se inventa o produto e depois se cria demanda, daí o crescimento da máquina publicitária. O declínio dos ideais desaguou em uma forma de viver que evita limitar ou adiar qualquer satisfação em proveito de realizações culturais ou do bem-estar das futuras gerações. A virtude está em conseguir dinheiro para trocar por novos bens. Não é surpreendente, portanto, que os sintomas contemporâneos apontem para o desinteresse pela participação na esfera pública e/ou para o abandono à compulsividade em geral.

 

 Bauman considera a contemporaneidade uma era pós-panóptica. O panóptico era um modelo de engajamento e confrontação de membros entre os dois lados da relação de poder. Na segunda modernidade, o poder se move com a velocidade do sinal eletrônico, sendo o telefone celular, a arquimetáfora desta instantaneidade. A diferença entre próximo e distante está a ponto de desaparecer, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial. O fim do panóptico marca o fim da era do engajamento. As principais técnicas do poder são agora a fuga, o desvio, evitar qualquer confinamento territorial, com seus corolários de construção e manutenção da ordem, presença e engajamento. A expressão “ficar” ilustra bem esse fenômeno social, significa o encontro efêmero entre duas pessoas que pretendem momentaneamente trocar carícias, sexo, sem qualquer compromisso com a manutenção de um vínculo. Por outro lado, a “síndrome do pânico”, epidemia da década de 90, representou uma dolorosa reação contra a rapidez deste fluxo. O sujeito se paralisa, para paralisar o tempo e se fixar no espaço.

 

Os poderes globais desataram os laços que prendiam o sujeito ao solo, à família, ao grupo social, para garantir a fluidez. A globalização aboliu todas as fronteiras. O sujeito não constrói mais uma carreira, ele participa de tarefas, de sorte que, mudará de emprego regularmente, assim que finda-las, migrando de uma cidade para outra e até mesmo, se necessário, mudando de país. As multinacionais, por exemplo, não pertencem a nenhuma nação, portanto, não devem fidelidade a nenhuma bandeira. Em contrapartida é a fragilidade dos laços humanos que permite que esses poderes atuem promovendo mais e mais desengajamento. Para Bauman, este mundo descartável, é o terrível mundo novo desenhado a partir da modernidade líquida.

 

Aquilo que nos interessa sublinhar, a partir das afirmações de Foucault e Bauman, é sua analogia com a definição de declínio da função paterna, proposto por Lacan, em 1938. Como sabemos, Freud afirmou que a identificação com a autoridade parental regularia o acesso à satisfação pulsional. Renuncia-se à satisfação para não perder o amor do objeto, o que aponta para a distinção entre escolha de objeto e identificação. Para Lacan, a clínica freudiana se apoiava no recalque, como posição assumida pelo sujeito frente à castração, o que nos leva a concluir que, naquela época, a posição neurótica seria dominante na cultura. Miller (1999), relendo Lacan, afirmou que, em virtude do declínio dos ideais, fenômeno que, para Bauman, caracteriza a pós-modernidade, a posição psicótica tornou-se dominante na cultura. Não se trata mais do recalque e sim da foraclusão, da exclusão localizada, individual e particular por um sujeito, daquilo que a psicanálise supõe ser o operador universal do desejo inconsciente, a verdade recalcada em qualquer sintoma: o nome-do-pai. Não se trata mais da clínica do conflito e sim da clínica da dissociação.

 

Apoiada nessas reflexões, Coelho dos Santos (2001), em uma cuidadosa pesquisa, onde articula sintoma, poder e laço social, demonstra que a contemporaneidade exibe os efeitos mais radicais do discurso da ciência e, desafortunadamente, sem o anteparo do nome-do-pai, da tradição, os efeitos do Outro universalizante da ciência podem ser devastadores. A demanda sem limite do Outro contemporâneo requer a divisão do sujeito além do que o corpo ou o aparelho psíquico podem suportar e subjetivar, de sorte que, os sintomas contemporâneos não representam mais as metáforas do desejo, e sim, novas modalidades de gozo. Diferentemente das neuroses tradicionais, não se pode mais atribuir ao pai a causa de uma falha de gozar. Faltando esse álibi, o sujeito atribui a si mesmo aquilo que falta para que seu gozo seja completo. Não se trata de proibição, o sujeito é que não está a altura de realizar aquilo que a cultura promete. Logo, os novos quadros clínicos não se estruturam em torno do que falta no campo dos ideais paternos e sim do que falta ao próprio corpo e ao próprio eu. Daí, os quadros de depressão, auto-desvalorização, síndrome do pânico, bulimia, anorexia, uso de drogas, consumismo desenfreado, adesão viciosa ao trabalho, insatisfação crônica com a forma do corpo, levando à busca compulsiva de cirurgias plásticas, dietas, ginásticas.

 

Contradizendo a proposta freudiana, nossa civilização tenderia a fazer coincidir o ideal – o ser, com o objeto de satisfação – o ter. Sendo assim, os novos sintomas nos levam a repensar a relação entre a identificação e o gozo. Eles funcionam simultaneamente como solução de compromisso entre o pulsional e a barreira imposta pelo supereu e como identificação ou nome que estanca a deriva pulsional. Isso nos deixa às voltas com as diversas tribos ou síndromes, que supõem famílias: os somatizantes, os drogaditos, os tatuados. O nome localiza o gozo e ao mesmo tempo identifica o sujeito. Se no lugar da tradição sólida e consistente temos a inconsistência, a liquidez das convenções, a debilidade do laço com o pai, deixaria o sujeito desarmado frente ao desejo da mãe, o Outro inconsistente. A sombra desse Outro devorador, livre da temperança da lei paterna, se abate sobre o eu, revelando seu efeito devastador: os excessos. Os excessos estão na base das novas e particulares formas de usufruir do corpo e dos laços sociais, em virtude da identificação a um Outro que não tem a consistência do nome-do-pai, de um Outro plural e caprichoso.

 

Parece que, os desafios da clínica contemporânea, revelados através do microcosmo das Clínicas Sociais, articulados com as reflexões a respeito do tecido social do qual ela emerge, colocam uma pá de cal no edifício da psicanálise. É justo o contrário. Creio que o saber da psicanálise tem muito a contribuir para compreensão e alívio do sofrimento psíquico nesses tempos velozes em que pensar se torna um ato tão revolucionário quanto o “dizer tudo o que vier à cabeça” foi um dia, nos anos 60. Hoje, o que está em jogo não é, apenas, a resolução dos conflitos, porém, a própria constituição da subjetividade. A psicanálise supõe pensar e pensar demanda tempo, bem que é hoje tão escasso, estando associado a dinheiro, a fazer dinheiro, quando a psicanálise propõe que antes de fazer é preciso ser. Tal urgência promoveu a valorização das terapias cognitivo-comportamentais, que oferecem remissão de sintoma onde a psicanálise propõe retificação subjetiva. Esses recursos são muito bem-vindos. Indiscutivelmente é desejável que em poucas sessões um paciente possa retomar o trabalho ou voltar a alimentar-se. No entanto, sabemos ser impossível o desabrochamento de um sujeito sem que se acompanhe sua gestação. Sabemos, também, que a remissão do sintoma não é cura, nem em medicina nem em psicanálise. Como lidar com esse impasse?

 

 

 

V – Criando subjetividades

 

Aqui, o pensamento de Winnicott se torna uma ferramenta especialmente valiosa. Ele complexifica a psicanálise quando demonstra que a técnica clássica atendia aos pacientes que se enquadravam nas neuroses de transferência. Para essas novas construções da subjetividade carece uma outra abordagem e foi atendendo a esse tipo de pacientes que ele desenvolveu suas idéias. A originalidade em Winnicott reside justamente na aposta que ele faz no trânsito, no devir. Na verdade o que ele propõe com sua teoria e técnica é uma estética da psicanálise, uma estilística da existência: a vida como obra de arte. A psicanálise seria o espaço potencial onde cada um de nós pode encontrar seu estilo pessoal e único de viver.

 

Essa proposta inovadora levou Deleuze (1984) a comentar, em sua crítica à psicanálise, que mesmo uma pensadora original como Melanie Klein havia se deixado render pelo discurso freudiano, transformando experiências vividas em fantasmas. Winnicott, porém, se encontraria no limite da psicanálise, em virtude da forma como a pratica. Ele “pressente que há um momento em que não é mais preciso traduzir, nem interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significantes ou em significados. Será preciso compartilhar, entrar no sofrimento com o doente, compartilhar de seu estado” (Deleuze, 1984, p. 12). A descrição desse momento só poderia ser concebida pela expressão “ser conduzido com” (Deleuze, 1984, 912).

 

 O que significa estar no limite da psicanálise? Essa afirmação não é ingênua. O conceito de transicionalidade não cabe dentro do paradigma da psicanálise? O paradigma da psicanálise está inserido na modernidade. Aponta para um sujeito cindido, uma estrutura tripartida – ego, id e superego, em que um ego é agente dessa engrenagem, ainda que seu agir seja asujeitado por um mais além. Diferentemente, Winnicott pensa um terceiro espaço, fora do aparelho psíquico, onde o mundo interno e o mundo externo se tornam íntimos; um ego com função integradora do self, self este que se encontra em permanente transformação: Ele diz: “going on being”, ou seja, “tornando-se”.  A criatividade só é possível graças à postulação desse espaço potencial, promotor do permanente devir.

 

Winnicott lembra que tomamos equivocadamente o conceito de saúde como ausência de doença. Viver é muito mais do que isso. A visada de tomar a relação tranferencial, como espaço potencial, e de entender a vida, genuinamente vivida, como a obra prima do sujeito, nos faz avançar mais além do rochedo da castração. No lugar do gozo sintomático inventa-se um estilo de viver, sabendo-se que esse estilo é a única possibilidade de manobra frente à onipotência do desejo e a impossibilidade de satisfazer plenamente o que é pulsional. Se o sintoma é uma forma particular de gozo, as soluções de cada cura serão, também, inéditas e particulares. Frente aos poderes líquidos da contemporaneidade o poder efêmero, todavia consistente, de criar um sujeito singular, estreita e enriquece os vínculos entre o indivíduo e a cultura.

 

 

Bibliografia

 

Bauman, Z. (2000) Modernidade Líquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001

 

Coelho dos Santos,T. (2001) Quem precisa de análise hoje? O discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001

 

Deleuze, G. “Pensamento Nômade” in Por que Nietzsche? Rio de Janeiro, Achiamé, 1984

 

Foucault, M (1979) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998

 

Freud, S. (1923) “Prefácio ao relatório sobre a Policlínica de Berlin (março de 1920 a junho de 1922), de Max Eitingon” in Edição Standad das Obras completas de Sigmund Freud, Vol. XIX. Rio de Janeiro, Imago, 1969

 

Lacan, J. (1938) Os complexos familiares na formação do indivíduo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993

 

Miller, J. A. “Le psicoses ordinaires” in Le Conversations d’ Antibes. Paris, Le Paon, Le Seuil, 1995

 

Winnicott, D. W. (1971) O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975

 


[1] Palestra apresentada na Mesa: Novas Patologias na Clínica Social, no                                                                             2° Encontro do Núcleo de Clínica do Instituto de Estudos da Complexidade Clínica: Novas Lógicas Sociais?

 

 

[2] Psiquiatra, Psicanalista, Membro Efetivo da SBPRJ, Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da UFRJ