Tereza M. Estarque: Apêndice 4 “Nascemos para aprender ” (02/2006)

NASCEMOS PARA APRENDER: Breves considerações sobre ética, política e relações de poder no ato de aprender

Se nos detivermos por alguns minutos sobre o título desta coletânea de entrevistas, podemos perceber que ele nos abre um amplo universo de reflexões e nos conduz a uma das mais antigas inquietações que incitam a mente humana e que concerne o próprio sentido da vida:  para que nascemos? À esta questão fundamental que se coloca para cada indivíduo e para a própria espécie, o conjunto deste trabalho tenta responder com singela e complexa afirmação: nascemos para aprender. Aprender como finalidade da vida, como rica possibilidade que se afirma a cada instante e não nos abandona mesmo no mais adiantado crepúsculo de nossa existência.

A resposta parece simples, não fosse o gigantesco desafio que se apresenta na compreensão e explicitação do conceito de aprendizagem. O ato de aprender, como faculdade natural e simultaneamente produto da vida social, pode e deve ser visto, ao longo do processo histórico,  em seus atravessamentos políticos.

A defasagem temporal com que esta obra chega ao Brasil, longe de se mostrar como  desvantagem, do ponto de vista de lapso informacional relativo à necessidade de um conhecimento científico up to date, afirma seu valor como documento histórico que evidencia imensa vitalidade e atualidade.

A vinculação entre o ato de aprender e as idéias transdisciplinares que inspiram os pensadores aqui elencados, encontra-se baseada não somente em suas convicções pessoais, mas também em suas reflexões e pesquisas científicas de reconhecida relevância. Apesar disto, o processo de implementação  desta maneira de pensar a pedagogia avança lentamente, levantando questões que merecem nossa atenção. No contexto deste questionamento, é digno de nota e oportuno mencionar também que, entre o 1º Congresso Mundial de Transdisciplinaridade realizado em 1994 – Convento de Arrabidas, Portugal – e o 2º, acontecido em 2005 -Vila Velha, Brasil- foram decorridos 11 anos.

O que há de tão difícil na digestão e assimilação deste paradigma que rejunta os campos de conhecimento para abordar um real concebido como uma rede de sistemas complexos interligados? Em que ponto de nosso espírito somos atingidos e nos colocamos em guarda frente à mudança de estatuto do conhecimento que passa a ser apresentado como verdade provisória, contrariando nossas convicções mais arraigadas? Como veicular e derivar deste contexto paradigmático uma proposta  convergente e consistente para a educação?

Costumo pensar que as dificuldades na implementação de um projeto de educação que leve em conta os aspectos acima mencionados são diretamente proporcionais a nossos anseios egóicos de estabilidade e auto-afirmação. A crença na permanência e solidez do mundo como condição de vida mais confortável constitui um importante obstáculo epistemológico a este empreendimento.

Sabemos que muitas barreiras internas e externas são erigidas para deter a necessária operação psíquica de destituição narcísica que democratiza o saber, validando as crenças e conhecimentos produzidos por diferentes culturas, em diversos tempos da história da humanidade. Contudo, é forçoso reconhecer a impotência e inoperância de um único ponto de vista para promover uma aproximação mais consistente do real em sua hipercomplexidade. É necessário que nos empenhemos na tarefa de destituir a hegemonia das verdades que tendem a se eternizar, reafirmado a crença no processo de conhecimento como  produção de narrativas sobre o real.

De forma coerente, Francisco Varela substitui com vantagens o conceito de transmissão pelo de acoplamento ativo e participativo envolvendo a tríade professor-aluno-ambiente. Desmonta a idéia de conhecimento como pura aquisição de informação efetivada pela transferência comunicacional e passa a tratar a informação como emergência de sentido que se produz ativa, recursiva e retroativamente no interior da tríade. Desloca-se a idéia de áreas delimitadas de conhecimento, tão comum em nossos ambientes disciplinares, para a noção de caminhos da aprendizagem,  o que sugere um processo de atravessamento viário dos territórios, característico da abordagem transdisciplinar.

Esta prática metodológica aplicada à educação tem inegável valor político, pois revela os vícios e aderências que se evidenciam nos mais variados exercícios de poder produzidos e reproduzidos  nos diferentes meandros do ato de educar, seja no seio da família, no espaço da escola, nas emissões midiáticas, nas mais diversas instituições,  religiosas, civis e governamentais. Desta forma,  tais vícios e aderências comparecem recorrentemente em todos os espaços nos quais a informação é tratada como verdade a ser escoada em via de mão única, na polaridade assimétrica do par emissor-receptor.

Resistir à barbárie que se perpetra cotidianamente em nossos atos, engendrada nos meandros de uma microfísica do poder, identificar suas forças e suas derivações na prática de ensino é premissa ética indeclinável para aqueles que se dedicam aos cuidados relativos ao ato de aprender em todos os níveis da convivência humana.  No dizer de Albert Jacquard, aprender com a cultura, para si, para o outro e com o outro e não contra o outro. Construir-se, enfim, como ser humano consciente e senciente, absorvendo o que vem do outro e selecionando dentre isto, aquilo que se escolhe para participar da constituição de um si-mesmo auto-eco-organizador.

Antes de Marx, Nietzsche já havia colocado a questão que também foi retomada por Edgar Morin:   “ Educar os educadores! Mas os primeiros deviam educar-se a si mesmos! E é para eles que escrevo.”[1] Assim,  cada um de nós que participa , a seu modo, do processo de construção do mundo e das novas gerações é tributário da tarefa de co-formação e auto-formação. Que possamos produzir a partir deste material, tomado como ponto de partida, efeitos multiplicadores que contribuam para um maior esclarecimento de que o ato de aprender, genuinamente, só pode se dar  no interior de um ambiente de confiança que torne possível, pela afetação de todos os nossos sentidos,  a surpresa e o maravilhamento a cada passo do caminho.

O Instituto de Estudos da Complexidade sente-se grato pela oportunidade de contribuir para dar andamento a este projeto audacioso que nasceu da doce e firme obstinação de sua autora e idealizadora Hélène Trocme-Fabre e do entusiástico empenho de Wanda Maranhão Costa em trazer à luz este material para o público brasileiro. Manifestamos nosso reconhecimento pelo apoio fundamental do Consulado da França e da PUC-Rio, nossas primeiras parcerias para alavancar esta produção. Agradecemos também à generosidade amorosa de Pedro Estarque, que trabalhou voluntariamente na realização da arte e condensação do material videofônico em um único DVD, o que tornou economicamente mais viável o projeto.

À editora Triom cabe, por fim, o mérito de dar prosseguimento à sua já conhecida trajetória de implementação dos valores transdisciplinares no cenário da educação no Brasil.

 

Tereza Mendonça Estarque

Pelo Instituto de Estudos da Complexidade

www.iecomplex.com.br


[1] Friedrich Nietzsche, Oeuvres philosophiques complètes, II.2,5[25]287-288