Tereza Estarque: Olhar Transdisciplinar e Ciência Contemporânea

 

 Olhar transdisciplinar e ciência contemporânea

 Tereza Mendonça Estarque

No esforço de suas realizações, as ciências contemporâneas vêm revelando a hipercomplexidade do real, no ponto mesmo em que a pesquisa avança em direção à sua apropriação.Trata-se de uma vertigem incessante que caracteriza a aventura do conhecimento: este progressivo movimento de fuga do real, fazendo-nos adentrar a intrincada teia de relações que se revela por detrás da simplicidade dos fenômenos.

 

Este estado da arte de nossas produções culturais,  requer a constituição de grupos de pesquisas que aproximam diferentes competências até então afastadas pelas fronteiras disciplinares. O exílio disciplinar  é, certamente, uma necessidade inerente ao esforço de aprofundamento dos conhecimentos específicos requeridos por cada esfera do saber, mas as exigências de amplitude territorial na qual se inserem nossos atuais objetos de estudo não nos deixam muitas alternativas. A ecologia das idéias, para utilizar uma expressão cara a Edgar Morin, torna-se cada vez mais uma estratégia para lidar com as mais relevantes questões de nosso tempo.

 

Os dois aspectos acima destacados apontam a necessidade do olhar transdisciplinar na construção do conhecimento, tendência que, gradativamente, vem se difundindo nos meios acadêmicos.

 

Talvez nenhum campo do conhecimento coloque tão em evidência esta necessidade de religação dos saberes quanto o fazer contemporâneo da biotecnologia, envolvendo engenharia genética, cibernética e farmacologia, mobilizando enorme interesse social e curiosidade intelectual, dada a amplitude das questões éticas que coloca para o futuro da espécie humana. Profundas mudanças em nossos sistemas de valores e costumes advirão de suas ofertas, tornando impossível pensar  a sociedade contemporânea se não discutirmos a lógica recursiva que recobre sociedade e tecnologia.

 

Via de regra, a questão mais inquietante que emerge deste solo de possibilidades, refere-se aos temores despertados pelo desenvolvimento da habilidade para reprogramar a vida e sua conseqüente abertura para transformação da natureza humana. Se tivermos esta competência, e tudo indica que isto ocorrerá, coloca-se a questão: teremos este direito? Ou devemos proceder ao sacrifício desta pulsão do conhecimento, destes anseios antropológicos mais longínquos, seja de imortalidade, seja de gestação  fora do útero, encenadas desde os mitos gregos até os judaico-cristãos.

 

Aqui nos defrontamos com a espinhosa tarefa de definir o conceito de Natureza Humana considerado por Hanna Arendt em a Condição Humana, como empreendimento de improvável sucesso: seria como pular sobre nossa própria sombra. Na hipótese de que fosse possível precisar este conceito, pensar a alteração da natureza humana pelas mãos do homo creator nos levaria de fato a um futuro pós-humano? Ou, ao contrário, seria parte de nossa própria natureza, este processo incessante de se auto transformar? Recoloca-se aqui o tema da distinção entre natureza e cultura, dicotomia que a epistemologia da complexidade se esforça por destituir.

 

Caberia ainda chamar a atenção para a imensa impregnação das mitologias gregas e judaico cristãs, nas tomadas de posição que alimentam o imaginário popular e norteiam debates em bioética. Kojève já havia formulado, em A Origem Cristã da Ciência Moderna, que a ciência moderna havia se constituído pelo cristianismo, na medida em que ele se distinguia do mundo antigo. Evoca-se sistematicamente a metáfora de homens brincando de deus, homens invadindo o território delimitado pelos deuses, faz-se apelo ao castigo eterno de Prometeu pelo roubo do fogo dos deuses, comenta-se a desmesura humana ao desejar comer da árvore do conhecimento da vida e alardeiam-se os perigos deste empreendimento que recebe, desde este ponto de vista, um aspecto de violação merecedora dos mais severos castigos.

 

A exigência de renunciar à pulsão do conhecimento coaduna-se com a perspectiva freudiana que advoga a necessidade do sacrifício como base para a construção social, fonte simultânea de mal estar na civilização. A perspectiva winnicottiana, ao contrário, não vê nas intensidades pulsionais a mesma fonte de risco de adoecimento individual ou coletivo, mas enfatiza enormemente a função do ambiente, para que estas forças possam se desenvolver no sentido da criatividade e da saúde. Assim, acompanhar criticamente nossa jornada em direção a este futuro humano ou pós humano constitui tarefa ética e política de primeira grandeza, requerendo democratização do debate, retirando-o do contexto restrito a cientistas e políticos profissionais.

 

Uma comunidade cívica esclarecida e engajada poderia exercitar-se na  função de consciência para a ciência, libertando a pulsão criadora, desvencilhando-se do modelo mítico fechado, da idéia viciada de rivalidade pai-filho, criador-criatura, abrindo para construção de uma comunidade de irmãos, artífices de nosso destino planetário comum.

 

 

Tereza Mendonça Estarque é Psicanalista, Dra em Ciências Sociais PUCSP, membro fundadora do Instituto de Estudos da Complexidade.(www.iecomplex.com.br) Org. “Ensaios de Complexidade 2”, 2004,   e autora de, Homo-Creator: ética e complexidade na reprogramação da vida, ambos da Ed. Sulina.