Tereza Estarque: Resenha “Os Mistérios da Trindade”, Jornal O Globo

Resenha de “Os Mistérios da Trindade”

de Dany-Robert Dufour, Companhia de Freud.

          Tereza Mendonça Estarque  para o Jornal O Globo

O livro de Dany-Robert Dufour, Os Mistérios da Trindade, é o resultado de uma pesquisa de fôlego, empreendida em torno de uma idéia bastante original e com insistência suficiente para fazer com que o autor trabalhasse sobre ela por cinco anos: a existência de uma forma trinitária imanente, inscrita em nossa condição de ser falante, configurando um pensamento trinitário que conheceu múltiplas atualizações ao longo da História do Pensamento. Por sua apresentação pontuada de referências às páginas posteriores, sugere e incita uma leitura eminentemente transversal, onde cada leitor avança e recua no texto, traçando  seu caminho particular, de acordo com as questões que o concernem.

Da Trindade Cristã ao Édipo em Freud, da Tríade Hegeliana ao real/imaginário/simbólico do Estruturalismo, o autor examina as configurações que, segundo ele, podem ser referidas a uma forma natural , uma constante incessantemente reinterpretada, a partir da qual ele empreende uma busca pelas premissas de uma genealogia da trindade.

 

Dufour não poderia fazê-lo sem examinar as diferentes formas de simbolização, dentre as quais isolou três operadores fundamentais que condicionam o pensamento e sobre os quais discorre com clareza e desenvoltura: o unário, o binário e o ternário. Apresenta-nos a história de um combate milenar entre o homem binário e o ternário. O primeiro, recusa a morte e quer sua erradicação. O segundo, não só a aceita como vive dela, funda-se nela, fazendo de sua representação as condições do simbólico e do laço social. “Para que dois estivessem juntos, era preciso que um tomasse, de boa vontade ou à força, real ou simbólicamente, a morte sobre si.” Ora, entre a morte consentida (renúncia) e o assassinato (extermínio), entre ser um operador simbólico e uma necessidade de atuação, encontram-se dispostas  diferentes formas de gestão da morte e é justamente em torno desta gestão que vai se configurar a história da cultura.

 

No exame destes operadores, somos levados a um confronto com algumas das mais significativas e relevantes questões de nosso tempo: a exclusão, a segregação, a eterna busca do homem pela imortalidade, a realização do super homem nietzschiano pela via da tecnociência e o mal estar na civilização.

 

A tecnociência, representada pela informática e engenharia genética, estão referidadas e fundadas na  idéia binária, cuja formidável propagação estaria colocando  o homem binário em posição de vantagem sobre os demais. Este homem binário, que quer a imortalidade, e que é identificado por Dufour ao super homem nietzschiano, também pode ser sacrificado em sua ascenção, se a pressa por fazer advir o super homem, for confundida por espíritos incautos e arrogantes, com a necessidade de matar o homem.

 

O autor tem o cuidado de não assumir posições militantes, evitando tomar partido por uma ou por outra tendência do pensamento, enfatizando apenas que haverá sempre um preço a pagar pela vitória do binário, se esta se fizer às escuras, de forma irresponsável e fora de um espaço democrático que permita ampliar as discussões. Dentre os preços a pagar neste mercado de troca pela imortalidade, estaria a morte do desejo.

 

O texto nos coloca em posição de escolha, entre a possibilidade de imortalidade aberta pelas pesquisas genéticas e a morte do desejo, desejo fundado na falta. Pelas heranças filosóficas de Espinosa, Nietzsche e Deleuze, estamos hoje, também, em posição de questionar a necessidade e a função social de um conceito de desejo fundado na falta. Não estamos certos, portanto, que eternidade e desejo sejam termos excludentes, a menos que queiramos nos ater à lógica binária. Mas se aceitarmos o desafio proposto no livro, de pensarmos o valor operativo da lógica unária numa visão não submetida ao raciocínio binário, talvez possamos arriscar imaginar que a eternidade não implique necessariamente a morte do desejo.

 

Apenas uma importante lacuna no trabalho de Dufour. O autor não dialoga com os físicos, passa ao largo das considerações atuais do universo quântico e não pensa este homem ternário como um ser prisioneiro da terceira dimensão, mas essencialmente como ser da linguagem. Ausência curiosa, em se tratando de um trabalho que articula brilhantemente muitos dos importantes campos do saber: literatura, lógica, linguística, biologia, cibernética, música, filosofia, psicanálise etc… Ausência sintomática, na melhor acepção do termo, casa vazia, no sentido do conceito Deleuziano  retomado por Dufour, para falar daquilo que escapa à causalidade linear da lógica binária e ao processo organizador da lógica ternária, abrindo, no modo unário, para o processo criativo.

Se seguirmos as orientações lógicas da auto-referência e da recursividade e fizermos um movimento de dobra utilizando os três operadores de Dufour, para pensar seu próprio esforço de produção,  poderíamos dizer que Os Mistérios da Trindade é um livro que se inscreve concomitantemente nos tres níveis lógicos de proposição, tem o mérito de não se aprisionar nas exigências formais do binarismo e nas apaziguadoras ordenações do trinitário, mantendo a inquietação permanente de um pensamento criador que só a manutenção de uma abertura para o unário pode favorecer.

 

Neste sentido, é um legítimo representante da Metodologia aberta que os pensadores da complexidade vem se empenhando  em fazer penetrar nos espíritos contemporâneos: “ A idéia unária dispensa, com efeito, a órdem disciplinar _ a das partilhas  de disciplinas conforme um recorte temático, onde cada mini racionalidade binária (causal ou diferencial) tem sua jurisdição local(…)Se o corte que afeta o campo do saber não deve mais ser situado de modo temático, entre cada ciência, podemos ganhar aí em coerência, congruência e facilidade: para nos deslocarmos de um campo temático a outros, não mais precisaríamos, com efeito, mostrar nossos passaportes a cada fronteira, até mesmo a cada posto de controle arcaico guardado pelas tropas corporativos científicas. A dobra deveria permitir passar de um gênero e um domínio para outro.”

 

Dufour nasceu na França em 1947, é professor na Universidade de Paris 8, onde leciona Filosofia da Linguagem, da Estética e da Educacão, levando em conta a descoberta freudiana. Este é o segundo trabalho do autor que chega às prateleiras das livrarias brasileiras, traduzido pela Cia. de Freud. Representa ainda, uma fonte de referências bibliográficas relevante para os pesquisadores de ciências humanas e ciências da complexidade em geral.

 

 

Terezinha Mendonça

 

Psicanalista, Doutora em Ciências Sociais, PUCSP

 

Coordenadora do Núcleo para o Pensamento Complexo RJ

 

Resenha publicada no Jornal O Globo.